CULTURA POPULAR

Raízes de fé e tradição: manifestações celebram Dia de Reis em Pernambuco

No encerramento do ciclo natalino, Dia de Reis é celebrado por manifestações culturais que unem religiosidade e rituais nordestinos, como o Cavalo Marinho e o Pastoril

Publicado em: 06/01/2025 06:00 | Atualizado em: 06/01/2025 14:34

 (Foto: Marcos Pastich/PCR)
Foto: Marcos Pastich/PCR
Como cantava Tim Maia, hoje (6), é o Dia de Santo Reis. A tradição cristã remonta à chegada dos Três Reis Magos – Melchior, Gaspar e Baltasar – com os presentes de ouro, incenso e mirra para o menino Jesus. No Brasil, além de representar o fim do ciclo natalino, a data também inicia a contagem regressiva para o carnaval. Porém, a celebração assume características únicas em cada canto do país. Em Pernambuco, por exemplo, ela é vivida intensamente por meio das tradições seculares, que mesclam fé e cultura popular. Com músicas, danças e rituais, manifestações como o Pastoril e o Cavalo Marinho deságuam na história de um povo e resistem ao tempo e à globalização.

Introduzido durante a colonização portuguesa, o folguedo de Reis se estabeleceu nas práticas do catolicismo popular e, sobretudo, nas relações familiares no Nordeste. "É durante as festividades religiosas, como a Folia de Reis, que o sagrado e o profano se reconciliam. Nesse momento, a rotina de trabalho e as responsabilidades domésticas são quebradas, e homens e mulheres que, no cotidiano, estariam focados na sobrevivência, ganham a liberdade de transcender, tanto no aspecto religioso quanto no artístico. É quando o povo cultua, representa e brinca que a cultura se faz viva”, afirma o historiador Estevam Machado.
 
Embora a desmontagem das árvores de Natal e presépios seja uma prática comum para encerrar os festejos natalinos, Pernambuco tem suas próprias tradições para selar o momento. Um dos grandes momentos é a Queima da Lapinha, que encerra a programação natalina promovida pela Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura Cidade do Recife. O início da concentração será às 16h, na Rua Nova. De lá, o cortejo de pastoris segue até o Pátio de São Pedro, onde a Lapinha será queimada, espalhando as esperanças do Recife para o ano novo e também abrindo alas para o carnaval no calendário cultural da cidade. O evento vai reunir 14 pastoris, além de três orquestras, blocos líricos, grupos de dança e passistas.

Um desses pastoris é o Jardim da Alegria, cujo legado é sustentado desde 1999 pela Mestra Jandecira, ao lado da sua mãe Mestra Jaci e da Mestra Ruthe. Os ensaios para a Festa de Reis têm início em junho, logo após o São João, embora os preparativos comecem ainda antes. “Passamos praticamente o ano todo nos preparando, cuidando de tudo, inclusive a confecção de roupas novas”, relata . As apresentações do Jardim da Alegria são feitas com jovens da comunidade de Águas Compridas, em Olinda, muitos deles desempregados e sem condições financeiras para arcar com despesas. "Se o pastoril se apresenta, é graças ao nosso trabalho árduo. Enfrentamos inúmeros desafios para conseguir colocar o pastoril, bonito e vibrante, nas ruas”, ressalta Mestra Jandecira. 

O Jardim da Alegria se destaca especialmente pelas jornadas autorais que compõe. Ao longo dos anos, já foram gravados quatro discos com 16 músicas, número que poderia ser maior se não fosse pelo alto custo das gravações. “Temos muitas composições para ser gravadas, nos faltam condições”, lamenta Jandecira, co-autora das jornadas. Para ela, o processo de criação é fruto de um talento concedido pelos céus, mas também à vivência que já possuía. “Acredito que seja um dom vindo de Deus, não é? Criamos com uma rapidez impressionante, graças ao conhecimento profundo que já adquirimos sobre o ciclo natalino”. 

Outra tradição marcante no mesmo dia é o Encontro do Cavalo Marinho, criado pelo saudoso Mestre Salustiano (1945-2008), ícone da cultura popular nordestina, e mantido pela sua família. Há 29 anos, vários brincadores e grupos de Bumba Meu Boi e Cavalo Marinho do estado se aglutinam no Centro Cultural Casa da Rabeca do Brasil, em Olinda. A edição deste ano contará, a partir das 18h, com a participação do Cavalo Marinho Boi Matuto do Mestre Salustiano, comandado pelos herdeiros da família, Cavalo Marinho Boi da Luz e importantes nomes como Mestre Grimário, Mestre Fabinho, Mestre Canarinho, Mestre Nego, Mestre Kaká da Rabeca, entre outros.

Pedro Salu, um dos filhos do mestre, ressalta a importância de conservar a memória do patriarca. "Para a família Salustiano, é uma grande responsabilidade manter essa tradição, preservando o legado dele. É um momento de renovar a esperança pela cultura popular tradicional, especialmente a cultura do Cavalo Marinho, que aprendi com meus antepassados e que continuo aprendendo até hoje. Ela alimenta a minha alma”. 

O Cavalo Marinho é uma forma de teatro popular que se manifesta, principalmente, durante os ciclos do carnaval e do Natal, mas também marca presença em outras festividades culturais. A tradição remonta a influências das culturas africana, indígena e europeia, refletindo as complexas raízes que se entrelaçam na Zona da Mata Norte, um território marcado pelo ciclo canavieiro. Durante o evento, os brincantes, chamados de folgazões, prometem levantar poeira e remontar as antigas apresentações, quando as brincadeiras começavam à noite e seguiam até o amanhecer. “É uma festa tradicional, com raízes que fortalecem nossa cultura popular”,  diz Pedro Salu. Dessa forma, aliando fé e sabedoria popular, as manifestações culturais resistem para preservar a memória dos ancestrais e passar o conhecimento adiante.