Judiciário

Três candidatos negros disputam vaga de desembargador no TJPE

Pela primeira vez, formação da lista sêxtupla da OAB tem cota para mulheres, pretos e pardos em Pernambuco; ao todo, 24 candidatos concorrem ao cargo

Publicado em: 30/09/2024 12:19 | Atualizado em: 30/09/2024 15:23

Candidatos concorrem à vaga de desembargador pelo Quinto Constitucional (Francisco Silva/DP Foto e Acervo Pessoal)
Candidatos concorrem à vaga de desembargador pelo Quinto Constitucional (Francisco Silva/DP Foto e Acervo Pessoal)

 
Ana Paula da Silva Azevêdo, de 35 anos, estudou na rede pública e hoje é professora universitária. Já Paulo Artur dos Anjos Monteiro da Silva, de 51, cresceu na periferia e viaja o País para atuar em grandes causas. Também de origem humilde, Bethane Karlise Ramos Cavalcanti Martins, 51, ainda encontra tempo para militar pelo direito de pessoas com deficiência.

Em comum, os três são advogados, sócios de escritórios e representam os únicos negros entre os candidatos a desembargador, magistrado com poder de julgar recursos e revisar decisões, no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Eles disputam a vaga com outros 21 colegas inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE).

Com formato inédito, a eleição para a lista sêxtupla, da qual sairá o nome do próximo desembargador da Corte pernambucana, terá cota de 50% para mulheres e de 30% para pretos ou pardos. Esta é a primeira vez que a OAB-PE adota critérios racial e de paridade de gênero na disputa.

Na prática, independentemente do número de votos que cada concorrente receba, o sistema de cotas vai garantir que pelo menos dois dos três candidatos negros sejam indicados ao cargo na lista sêxtupla. A votação da lista está prevista para o dia 18 de novembro.

O Diario de Pernambuco conversou com os três candidatos. Com diferentes trajetórias, Ana Paula, Paulo Artur e Bethane Karlise são unânimes em defender as cotas estabelecidas para o processo de seleção.

Hoje, o TJPE tem 51 desembargadores empossados, dos quais apenas duas são mulheres. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgada em setembro de 2023, também mostrou que só 11,3% de todos magistrados no TJPE, incluindo os juízes de primeiro grau, eram pretos ou pardos – bem abaixo do parâmetro estabelecido de no mínimo 28,7%.

“Que não sejamos os únicos”

Filha de um policial e de uma agente de saúde, Ana Paula foi criada em Igarassu, no Grande Recife, e decidiu fazer Direito ainda na infância. Aluna de escola pública, foi beneficiada pelo Prouni, programa federal para estudantes de baixa renda, e ingressou na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) aos 16 anos. Saiu de lá laureada. “Eu sou a primeira advogada da família”, conta.
 
Cinco anos depois, já era professora da instituição. Sem abandonar a atuação acadêmica, Ana Paula também se dedicou a ações cíveis e a consultorias para que empresas fiquem em conformidade com a lei, o chamado compliance, a partir de 2011. “Dentro da minha jornada, eu me orgulho muito de possibilitar que as organizações reflitam sobre a importância de pautas antidiscriminatórias. Acredito que o Direito pode ser utilizado com propósito”, diz.
 
Para a advogada e professora, a adoção de cotas no processo de seleção do próximo desembargador é positiva por dois motivos: “propósito e inspiração”.
 
“As nossas candidaturas só se tornam efetivamente possíveis e viáveis a partir da previsão da política afirmativa, do contrário não teríamos essa possibilidade”, afirma. “Somos os primeiros. Que não sejamos os únicos”.
 
"Dificilmente se vê uma pessoa negra" 

Com 27 anos de carreira, o advogado Paulo Artur compartilha da mesma opinião da colega. “Como sociedade, precisamos nos acostumar a ver negros em cargos assim, sem que cause surpresa. Existem negros capazes de ocupar e exercer com maestria essas funções”, diz. “Esperamos que a candidatura inspire outras pessoas a se prepararem e a construírem o próprio currículo para preencher essas vagas no futuro”. 

Filho de professores, o advogado cresceu em Campo Grande, Zona Norte do Recife e estudou em escolas privadas. Também foi bolsista na Unicap. “Eu vivi duas realidades: a do colégio de classe média e a do meu bairro. Nem todos os meus amigos estudavam. Os que estudavam nem sequer tinham merenda”, afirma. “Tudo isso me tornou muito arisco em relação a limitações”.

Segundo relata, Paulo Artur também viveu episódios em que teve a qualidade profissional questionada por causa da cor da pele. “Eu sempre tomei como incentivo e me tornando mais arisco”, diz o advogado, que hoje é especialista em direito regulatório e infraestrutura, com bagagem em áreas de transporte público, mineração e radiodifusão.
 
“São espaços em que dificilmente você vê uma pessoa negra. Mas não quero ser integrante de uma ‘aristocracia negra’. Eu quero normalizar”.
 
"Reparação histórica" 

Já Bethane Karlise entende que a cota adotada pela OAB-PE é uma questão de “reparação histórica”. “É importante tanto para mulheres, que vem buscando empoderamento, quanto para negros, que nunca tiveram uma chance desde o fim da escravatura”, argumenta a advogada, que tem 29 anos de carreira e atua nas áreas de família e sucessões. “Não é para ser a vida toda, mas por certo tempo, até igualar brancos e negros”.

Nascida no Jardim Brasil, periferia de Olinda, Bethane Karlise afirma ter crescido em uma família “muito pobre” e que sempre “gostou de estudar”. Segundo conta, precisou vender roupas, jóias e chocolate para pagar passagens de ônibus e se manter em duas faculdades, de Pedagogia, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e de Direito, na Aeso. “Fui a primeira pessoa a me formar na minha família”, relata.

Com um filho autista, também se dedica ao direito de pessoas com deficiência e é autora de ação que balizou a jurisprudência do Tribunal sobre o tratamento oferecido por planos de saúde. “Eu quero ser desembargadora para tratar todos com igualdade. Às vezes, a pessoa chega a um cargo de poder e esquece de onde veio. Eu sei a minha origem”, diz.

Durante o processo eleitoral, todos os candidatos autodeclarados negros tiveram que passar por uma banca de hetoridentificação, responsável por evitar fraudes, que analisou o fenótipo dos concorrentes por vídeo. Inicialmente, a candidatura de Bethane Karlise foi indeferida. Segundo afirma, os motivos teriam sido ter a “boca rosa” e estar com “cabelos lisos”. A decisão foi revertida após recurso administrativo.

Como é a eleição

Ana Paula, Paulo Artur e Bethane Karlise concorrem à cadeira que está desocupada desde maio na Corte e, desta vez, será destinada ao chamado Quinto Constitucional – ocasião em que a vaga é preenchida por um membro da OAB ou do Ministério Público, e não por um juiz de carreira.

As eleições acontecerão de forma on-line em Pernambuco. Na ocasião, cada advogado habilitado pode votar em até seis colegas. Com base no número de votos e nas vagas reservadas para cota, a OAB-PE forma uma lista sêxtupla e a encaminha para o TJPE.

No Tribunal, os nomes escolhidos passam por nova votação – dessa vez, já sem obrigação de seguir critérios racial ou de gênero. Com acesso ao currículo dos candidatos, os desembargadores já empossados escolhem três nomes e formam uma lista tríplice, enviada ao Executivo estadual.

Caberá à governadora Raquel Lyra (PSDB) a decisão final sobre o advogado que, de fato, vai ser o próximo desembargador no Estado. A expectativa é que o novo magistrado seja empossado até o fim do ano.