MÚSICA
Músico recifense Caio Lima usa grande cheia de 1975 como mote para projeto
Por: André Santa Rosa
Publicado em: 17/07/2020 09:27
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Foto: Marcos Araújo/Divulgação |
Em 1975, uma grande cheia foi registrada na cidade do Recife. “É o maior desastre do século”, dizia a manchete do Diario de Pernambuco, na manhã daquele 19 de julho, quando a cidade registrou 107 mortos. Passados 45 anos da tragédia, com o mundo imerso em mudanças climáticas e debates sobre os impactos humanos na natureza, o músico recifense Caio Lima, da banda Rua do Absurdo, parte do imaginário da enchente para lançar o single Antropia. A canção, que está a partir desta quinta-feira (17) disponível nas plataformas de streaming, dá início ao projeto O Recife inundado, uma construção poética em torno dos efeitos das ações humanas e do antropoceno.
O processo de criação da canção remete a 2018, como parte da pesquisa do músico sobre ruído, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE. “Esse trabalho começa muito dos desdobramentos da minha pesquisa com ruído. Tinha uma sensação de um tempo mais lento com a banda e muito tempo sem tocar. Surgiu esse desejo de fazer uma produção mais rápida, mais leve e sem que precisasse mover outros criadores”, explica. A música foi gravada no Glândula Lab, em parceria com Cássio Sales (Cosmo Grão), mixado por Rafaela Prestes e masterizado por Diogo Guedes. A imagem da capa foi criação de Breno César, com design de Igor Marques.
Antropia é a canção de abertura de O Recife inundado, um projeto estético interessado nessas especulações sobre o futuro do mundo, com esses contorno apocalípticos. Cantada com foco no trabalho literário construído na letra, a canção usa delays, distorções e o ruído como alegoria desestabilizadora para os desdobramentos das mudanças climáticas. É uma jornada que, ao fim, conseguimos ouvir ao fundo o som da natureza, colocando sons de grilos e outros insetos. Jornada com traços épicos, que segue a base da Jornada do herói, de Joseph Campbell. “Eu estava na Chapada Diamantina e pensei nessa ideia, do Recife inundado. Então a música é uma investigação das fronteiras da canção e um ensaio de crítica de antropocentrismo nas canções, com uma dimensão forte da crise ecológica”, comenta.
Justamente por morar em uma cidade que está no mapa das mudanças climáticas, dos alagamentos e dos avanços das marés, o músico decidiu partir do imaginário posto pelo episódio da grande cheia. “O Recife já convive com essa ideia da inundação pela própria ideia que a cidade foi fundada. Ela está constante no imaginário da cidade. Desde a infância eu convivo com alagamentos, quando chove tudo para. Surge essa ideia do Recife como essa cidade moderna, mas que está sempre alagada.”
A primeira enchente registrada na cidade foi em 1632. Quase 400 anos depois, a chuva traz efeitos de uma cidade que cresceu sem infraestrutura, no meio de um terreno alagado e cortado por dois rios. Em 1855, através de um relatório publicado no Diario de Pernambuco, a cidade lamentava as “bases para um plano de edificação da cidade” e denunciava a destruição dos mangues e pântanos, que eram escoadouro natural das águas da chuvas.
Ainda que o projeto especule o antropoceno, as imagens evocadas pelo trabalho são uma espécie de sobrevivência do passado, mas na intenção de um futuro. Mas Antropia pensa, também, a relação da cidade com o apagamento de seus desastres naturais. “O curioso é que existe um certo esquecimento dessa grande cheia, eu estava pesquisando e não tem muito registro disso, muito é feito através da oralidade e das histórias. Recife apagou a grande cheia de certa forma, o que é uma maneira de negacionismo. A Via Mangue é um exemplo disso. Recife continua se fazendo em cima das suas catástrofes”, opina Caio.
Ouça a canção Antropia: