Emprego

Apps de entrega causa debates sobre relações trabalhistas

Publicado em: 11/07/2020 08:00

Trabalhadores que já atuavam em serviços de entrega por aplicativo antes da pandemia começaram a ver demanda e renda seguindo em caminhos inversos. Com o isolamento, o número de pedidos por delivery aumentou; com o desemprego, a concorrência da mão de obra também. Consequentemente, menos dinheiro no bolso daqueles que prestam o serviço na ponta e se mantêm expostos ao vírus e a outros riscos.


A narrativa dos próprios entregadores está também no estudo “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”, conduzido pela Universidade Federal do Paraná, com coleta de dados também no Recife. Enquanto isso, os registros de downloads de aplicativos alcançaram pico de 126% de crescimento na comparação com o mesmo período de 2019. Veja os números na tabela.


Essa relação trabalhista, nova e ainda rodeada de dúvidas, tem movimentado tribunais e tem pontos de desacordo. “Eu não admito ser chamado de empreendedor, eu não mando no meu trabalho”, diz o entregador Jeison Lima, há quatros anos atuando na atividade no Recife. Ele está entre as lideranças da Associação dos Motofretistas de Pernambuco (Amope) que se juntará ao movimento no País que reivindica melhores condições de trabalho e outros direitos, em ato previsto para o dia 25 (leia mais). 


Juntos, eles estão encenando um episódio até então inédito: uma manifestação de trabalhadores pedindo melhores condições a empresas que não se reconhecem como suas empregadoras. O advogado trabalhista e professor Gonzalo Salcedo chama atenção à naturalização dessa sistemática. “A essência da relação de trabalho precisa ser analisada. Eu tinha uma fábrica, passei a ter uma estrutura de terceirização e, agora, essa subordinação por tecnologia”, diz, sobre as empresas que se dizem de tecnologia, mas comandam oferta de entregas a partir de “colaboradores”.


Em casos que já estão na justiça, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em São Paulo, por exemplo, reconheceu o vínculo entre empresas e esses entregadores “parceiros” - um acerto, na visão de Salcedo - o que não aconteceu no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Para o advogado, a questão fundamental é comprovar essa subordinação e a tecnologia é apenas mais uma ferramenta de controle da empresa. “Ainda não é ponto pacífico, há muitas controvérsias nas discussões sobre essas novas relações”.


A reforma trabalhista de 2017 trouxe facilidades e flexibilizações entendidas como necessárias, embora questionáveis. “Seguimos relativizando o direito do trabalhador. E isso está ‘sempre’ acontecendo”, acrescenta Salcedo. É uma questão de interesses políticos e econômicos, com forte viés ideológico. “Perceba que, hoje, parece até ofensivo chamar de alguém de ‘empregado’, mas quem tem ‘funcionário’ é o serviço público. Você acredita que é à toa que se deixou de chamar alguém de ‘empregado’?”, diz, se referindo à letra da Consolidação das Leis do Trabalho que, por exemplo, em seu artigo 3°, define empregado como “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. “Não acredito as mudanças sejam aleatórias, e isso inclui a linguagem. Há quem diga que pessoas, quase no desespero por uma fonte de renda, tornaram-se ‘empreendedoras’”.


Existe a visão de que essa nova formatação das atividades econômicas é irreversível. “O que não é possível é permitir, junto com inovações tecnológicas, a naturalização de um processo de exploração por quem possivelmente tem condição de se organizar para não explorar”, continua Salcedo. E há ainda o consumidor, indivíduo que tem uma necessidade diante de uma estrutura capitalista e que pode, ou não, aderir ao serviço de acordo com seus próprios valores. “O que não é possível é que o Estado admita desta forma, a começar pelo Parlamento”.


Salcedo acredita que talvez não seja necessária uma nova legislação, mas a melhor compreensão do processo, inclusive a trajetória histórica das relações de trabalho e como se chegou à situação atual. “O que precisamos pensar é: quais concessões a sociedade está disposta a fazer para que essa subordinação ‘algoritmizada’ exista? A precarização das relações de trabalho de uma parcela da população em prol de uma suposta economia de compartilhamento e geração de renda? Afinal, a reforma trabalhista era prometida como o motor pulsante da geração de empregos. Foi o que ocorreu?”.


Subordinação

Argumentar que uma empresa x não pode controlar o entregador (ou motorista) parece não ter relação com a realidade e o alcance da tecnologia. Afinal, por ela, é possível saber quando o entregador começou a trabalhar, quando terminou e por onde fez entregas. Nos processos judiciais, no entanto, a resposta pode ser diferente pois depende de provas e da interpretação do juiz. Até o momento, cada caso é um caso.


E não se trata de não poder respeitar o direito do trabalhador, mas possivelmente de não querer ou de privilegiar a redução custo. “O que se discute é que pode ser um ‘dumping social’, enriquecendo a base da dependência financeira e da exploração do outro. Não é simplesmente proibir que um trabalhador possa pegar uma bicicleta e trabalhar, mas quais contrapartidas precisam ser exigidas das empresas e que direitos são dados a essas pessoas. Não é tornar essas empresas ilegais, mas encontrar um caminho em que, de um lado, se permita que elas existam e, do outro, o trabalhador possa se considerar respeitado em sua dignidade, realizando as determinações da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Não se trata de aumentar impostos, mas de se estabelecer um diálogo social visando ao interesse coletivo”.


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