REDUÇÃO DE POLUENTES

Poluição impulsiona as superbactérias, alerta novo relatório da ONU

Publicado em: 08/02/2023 09:01

 (Foto: KEREM YUCEL/ AFP)
Foto: KEREM YUCEL/ AFP
Os setores farmacêutico e agrícola têm relação direta com a resistência antimicrobiana (RAM), um problema que poderá causar 10 milhões de óbitos anuais até 2050, a mesma taxa de mortalidade global por câncer, alertou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnud). Um relatório divulgado ontem sobre as dimensões ambientais da RAM afirma que, sem combater a poluição causada pelas indústrias de medicamentos e pela atividade agrícola, é impossível reduzir o surgimento, a transmissão e a disseminação das cepas bacterianas e de outros micro-organismos que não respondem mais a nenhum antibiótico conhecido.

Para a economia, a resistência antimicrobiana, segundo o documento, poderá significar uma queda no produto interno bruto (PIB) de US$ 3,4 trilhões por ano, até 2030, jogando mais 24 milhões de pessoas para a pobreza extrema. As principais vítimas estão nas regiões globais menos desenvolvidas. "A crise ambiental de nosso tempo é também de direitos humanos e geopolítica", disse, no lançamento do relatório, Mia Amor Mottley, presidente do Grupo Global de Líderes sobre Resistência Antimicrobiana. "O relatório publicado pelo Pnuma é mais um exemplo de desigualdade, já que a crise da RAM está afetando desproporcionalmente os países do Sul Global", completou Mottley, primeira-ministra de Barbados.

Os antimicrobianos são agentes destinados a matar ou inibir o crescimento de micro-organismos e incluem antibióticos, fungicidas, antivirais e parasiticidas. Essas substâncias são amplamente utilizadas na área da saúde humana e animal, além da agricultura. Não se trata apenas de remédios, mas de uma série de produtos, incluindo sabonetes e desinfetantes ambientais, destaca o documento do Pnuma. Quando os patógenos deixam de responder aos tratamentos aos quais eram suscetíveis anteriormente, acontece o quadro de RAM.

A resistência pode ser natural ou adquirida (Leia Para saber mais). No último caso, é uma resposta evolutiva dos micro-organismos, que sofrem mutações para fazer frente às substâncias antimicrobianas. O aumento do uso de produtos para combater patógenos e de outros estressores, como metais pesados, cria as condições favoráveis para que isso aconteça. A RAM pode se desenvolver no trato digestivo de humanos e animais ou em meios ambientais (água e solo), além de fontes como esgoto.

"Uma área em que o uso de antimicrobianos tem impacto direto no meio ambiente é na agricultura", destaca Mathew Upton, professor de microbiologia médica da Universidade de Plymouth. "Embora a situação esteja melhorando em algumas partes do mundo, grandes quantidades de antimicrobianos são usadas para tratar e prevenir infecções em animais do setor pecuário. A poluição ambiental com resíduos contendo antimicrobianos é um risco importante que impulsiona a seleção de bactérias e fungos resistentes no futuro", diz Upton.

Boas práticas
 
O especialista destaca que o relatório do Pnuma, do qual ele não é autor, discute a necessidade de incentivar boas práticas de fabricação, venda e uso de antimicrobianos para reduzir a exposição ambiental. "O documento descreve como a criação aprimorada e outros métodos de prevenção e controle de infecções, como a vacinação, devem ser usados para reduzir infecções e a necessidade de uso de antimicrobianos, o que, por sua vez, limita a poluição ambiental. Isso é particularmente aplicável na aquicultura, que será uma importante fonte de proteína até 2050."

Em um momento de tripla crise planetária — padrões climáticos extremos, mudanças no uso da terra e poluição biológica e química —, o desenvolvimento e a disseminação das RAMs é crescente, avalia o Pnuma. "A poluição do ar, do solo e dos cursos de água prejudica o direito humano a um ambiente limpo e saudável. Os mesmos fatores que causam a degradação do meio ambiente estão piorando o problema da resistência antimicrobiana. Os impactos da RAM podem destruir nossos sistemas de saúde e a alimentação", disse Inger Andersen, diretora executiva do programa na ONU. "Reduzir a poluição é um pré-requisito para mais um século de progresso em direção à fome zero e boa saúde."

"A ciência sabe, há algum tempo, que a eficácia dos antimicrobianos está diminuindo à medida que bactérias, vírus e até mesmo parasitas e fungos se tornam resistentes aos tratamentos existentes", lembra Oliver Jones, professor de química no Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália. "O que, talvez, ainda não tenha caído na consciência pública é o tamanho do problema que isso pode ser para a sociedade em um futuro muito próximo, tanto em termos de saúde humana quanto de efeitos na agricultura. Então, é ótimo ver esse tópico recebendo alguma atenção", diz, citando o relatório do Pnuma.

Hospitais
 
Jones destaca que as pessoas tendem a pensar em resistência antibacteriana como um problema associado apenas a hospitais. "O que esse relatório mostra é que antibióticos e outros medicamentos que acabam no meio ambiente são um fator importante na disseminação da resistência a antibióticos e algo ao qual precisamos prestar atenção o quanto antes. Se vamos abordar o problema da resistência aos antibióticos, precisamos conhecer toda a gama de fontes do problema e seu risco relativo. Esse relatório é um passo bem-vindo nessa direção."

O relatório do Pnuma foi lançado um dia depois de um estudo financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates afirmar que, globalmente, nos dois primeiros anos da pandemia de covid-19, 75% dos pacientes de Sars-CoV-2 foram medicados com antibióticos. Segundo a pesquisa, publicada na eClinicalMedicine, isso aconteceu mesmo com menos de 10% dessas pessoas apresentarem taxas de coinfecção bacteriana.

O levantamento foi feito com dados de 71 países, incluindo o Brasil. "Em um grande revés nos esforços globais para combater a resistência antimicrobiana, bilhões de doses excessivas de antibióticos podem ter sido prescritas e consumidas durante a pandemia. A hora de agir é agora", disse, em nota, Arindam Nandi, pesquisador do Population Council e coautor do artigo.
 
 Mutações genéticas
 
Quando as substâncias antimicrobianas são liberadas no meio ambiente, elas podem selecionar micro-organismos resistentes, ao mesmo tempo em que novos patógenos adquirem a habilidade de escapar dos mecanismos que levariam à sua eliminação. Isso acontece por mutação espontânea, aquisição e transmissão de elementos genéticos móveis (EGM) ou por meio de eventos de transferência horizontal de genes.

Os genes de resistência antimicrobiana (GRAs) são porções de DNA que codificam a resistência a um ou mais compostos usados em medicamentos e outros produtos usados para matar os micro-organismos. Ao longo do processo evolutivo, eles podem surgir naturalmente ou serem adquiridos. Locais como rios, lagos e oceanos, para os quais deságuam grandes quantidades de poluentes, são mais propensos a abrigar patógenos com as mutações.

Compostos biocidas e alguns metais pesados, muito comuns em resíduos industriais, podem criar uma pressão seletiva em espécies bacterianas que contêm múltiplos genes associados à resistência antimicrobiana. O zinco e o cobre, por exemplo, amplamente utilizados como suplementos alimentares na pecuária e controle de doenças, podem selecionar bactérias resistentes a drogas e aumentar sua sobrevivência em ambientes que contêm esses metais, como o trato gastrointestinal dos animais que se consumiram rações com os dois elementos.

O contexto agrícola, o uso de herbicidas para controlar ervas daninhas na agricultura podem enriquecer os genes que conferem resistência, alterando os microbiomas do solo e contribuindo para o maior desenvolvimento de resistência antimicrobiana. Microplásticos também representam um problema, pois abrigam micro-organismos capazes de poluir o solo e os ambientes aquáticos. (PO)

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma)

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