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Amplamente debatido no Festival de Cannes 2024, onde chegou a vencer o prêmio de Melhor Roteiro, A substância, que acaba de entrar em cartaz nos cinemas, é provavelmente o trabalho de horror mais destemido lançado comercialmente este ano, além de um dos comentários sociais mais diretos e radicais que o gênero produziu na memória recente – e a competição é forte.
A trama é, essencialmente, uma fábula mórbida na qual interessa mais a experiência visual e sensorial do que qualquer tipo de explicação lógica/racional. A protagonista, Elisabeth (Demi Moore), é uma famosa atriz e apresentadora que, ao completar 50 anos, é dispensada pela companhia de televisão por conta da sua idade. Após sofrer um acidente, ela entra em contato com uma substância injetável que, de acordo com as instruções, libertará de seu próprio corpo uma versão ‘mais jovem e perfeita’ sua. Para que as consequências não sejam letais, é estritamente necessário que as duas versões alternem o tempo no controle: sete dias para cada uma, sem exceção.
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É evidente que tudo dará errado, menos para esse filme avassalador e insanamente divertido que é A substância, segundo trabalho em longa-metragem de Coralie Fargeat, que fez o igualmente estiloso e brutal Vingança, de 2018, no qual uma jovem era violentada e quase morta no deserto e retornava para a acertar as contas. Cineasta ambiciosa e com sangue nos olhos para filmar, Fargeat tem um interesse peculiar em intensificar o impacto visual de premissas essencialmente simples, como uma grossa lente de aumento.
Neste caso, o sempre atual assunto da imposição de padrões de beleza às mulheres, em uma sociedade dependente das telas e da construção/difusão da imagem, é tratado como a matriz do ódio que uma pessoa pode nutrir por si devido à pressão externa. Chama a atenção que, para levantar esse debate e expor os perigos dessa dependência, Fargeat leva até as últimas consequências as regras muito particulares do seu universo, em que cenários e programas parecem eles mesmos também versões alternadas e hiperestilizadas da vida real.
Qualquer tipo de sutileza, seja de ordem visual ou temática, é arremessada pela janela logo nos primeiros segundos de filme. Cores intensas, lentes que distorcem a imagem e um uso completamente desregrado da violência transformam a narrativa em um pesadelo inexorável, que preserva um humor perfeitamente consciente dos seus absurdos. O texto é o mais direto que consegue: “Quando chega aos 50, acaba”, afirma o dono da rede de TV vivido por Dennis Quaid. A substância não está interessado em subtextos enigmáticos, mas em fazer da forma o conteúdo – e das sensações a mensagem.
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Brilhando aqui na interpretação mais física e desafiadora de sua carreira, Demi Moore defende as escolhas da direção com unhas e dentes, enquanto Margaret Qualley (no papel da versão jovem) ganha uma autonomia impressionante no jogo de espelhos da trama. O fato de a nova versão de Elisabeth se tornar cada vez mais desgarrada da original é outro inteligente argumento do filme sobre a perda de identidade envolvida na compulsão contra o envelhecimento.
Devido aos excessos em cima de excessos, é inevitável que A substância perca parte do público desfecho, quando o tema é reforçado através das parábolas mais extremas. O exagero é justificável, não obstante: o mundo de obsessões pela fama, pela evidência nas telas, por um ideal eterno de beleza e de misoginia entranhada em todas essas coisas juntas é, em si, uma grande caricatura. E a liberdade conferida ao gênero do horror corporal é perfeita para tocar nessas feridas e expurgar o pânico imposto às mulheres na busca pela perfeição.