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Uma das coisas mais significativas do 52º Festival de Cinema de Gramado, além do símbolo de resistência da realização do evento após a catástrofe no Rio Grande do Sul, foi a diversidade de olhar na representação feminina. Entre os sete longas brasileiros da competição, quatro eram dirigidos por mulheres – e um dos outros três com direção masculina era, de alguma forma, um comentário também sobre o feminino, só que através da ausência.
Dirigido por Erico Rassi, responsável pelo belíssimo Comeback: Um matador nunca se aposenta (último trabalho da carreira de Nelson Xavier), Oeste outra vez, como o título implica, é um faroeste – e sem timidez alguma em sê-lo. Imagina-se que foram a inteligência, originalidade e o surpreendente senso de humor do projeto que lhe rendeu o cobiçado Kikito de melhor filme no festival da Serra Gaúcha, além dos prêmios de ator coadjuvante e fotografia. Em breve, portanto, uma data de lançamento comercial deve ser anunciada.
Na trama, dois homens (Ângelo Antônio e Babu Santana) entram em guerra um com o outro na disputa por uma mulher (Tuanny Araújo), que decide abandonar aquele lugar e deixar ambos para trás. O que começa como uma briga infantil à beira da estrada vai envolvendo atiradores dos dois lados, em um caminho sem volta de uma violência às vezes dolorida, às vezes assumidamente patética.
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Rodado no interior de Goiás, mas ambientado em um universo próprio e sem maiores especificidade temporais, Oeste outra vez tem apenas uma personagem feminina – e ela aparece na primeira cena do filme, andando de costas para a câmera, e sai de cena sem dizer uma única palavra. A ausência dessa figura, assim, é o que deflagra todo o conflito e ainda funciona como um comentário sobre a incapacidade de diálogo e autorreflexão da ‘terra arrasada’ dos homens.
O personagem de Ângelo Antônio, a certa altura, forma parceria com um pistoleiro interpretado por Rodger Rogério, ator cearense veterano que grande parte do público brasileiro conheceu pela participação em Bacurau, como um repentista que ironiza a dupla de forasteiros, e que saiu do Festival de Gramado premiado com o Kikito de ator coadjuvante nesta 52ª edição. Em Oeste outra vez, Rodger empresta seu carisma a um sujeito que, aos poucos, ganha o protagonismo e a voz neste faroeste, que conta ainda com as excelentes participações de Daniel Porpino e Antônio Pitanga – atores que brilham em uma formidável sequência de pequenos confrontos dentro de uma casa, no último ato.
Talvez a coisa mais fascinante que Erico Rassi faça no filme é manter-se fiel aos códigos do faroeste – gênero americano e cinematográfico por excelência – ao passo que jamais copia ou emula uma estética estrangeira. A concentração da narrativa de poucos personagens naquele espaço difícil de definir, quase alegórico em suas épicas paisagens, ajuda a brasilidade temática do filme decantar suavemente até a superfície (no dialeto, nos causos contados um para o outro, na diversidade de sotaques).
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Entre pequenas e fortes cenas de ação, por exemplo, Oeste outra vez dá tempo para que esse homens rudes, grosseiros e, mesmo assim, transparentes em suas infantilidades emocionais contem uns aos outros as suas frustrações e propósitos. Neste universo áspero e seco que pode parecer muito arcaico mas que é, no fundo, bastante contemporâneo do ponto de vista semântico, o ritual da laranja com sal, bebida, sinuca e presença de armas é o único meio pelo qual essas figuras conseguem se expressar.
A ausência de mulheres, além da primeira, em cena ao longo do filme é conceitual e atmosfericamente perfeita por tornar Oeste outra vez um tentáculo brasileiro de um ecossistema toxico masculino, no qual as saídas para os problemas são às vezes melancólicas e irônicas, mas dificilmente soluções duradouras. Nesse tom metafórico e no sarcasmo constante, o trabalho de Rassi na inflexão dos diálogos entre os atores remete ao cinema dos Yorgos Lanthimos, dos Irmãos Coen e até mesmo do Martin McDonagh (deste último, guarda boas semelhanças com Os banshees de Inisherin), sobretudo na forma como as pessoas falam coisas absurdas umas para as outras em uma monotonia deliberadamente cômica.
Visualmente, o diretor quase nunca apela para grandes arroubos estilísticos, como, em princípio, manda o figurino de um western independente clássico, mas ele se dá pontualmente o direito de brincar com as expectativas da plateia através de alguns planos mais velozes que quebram a calma de boa parte do filme e lembram o espectador da tensão que está em jogo entre os personagens.
A beleza das referências aqui, no entanto, não se dá necessariamente pelo conhecimento evidente de Erico Rassi e da equipe com relação às variações recentes do cinema de faroeste, mas pela maneira como utiliza o que de fato julga necessário para fazer o seu trabalho. Essa precisão entre aceitar o que já foi traçado pelo cinema e colocar os trilhos em território novo a partir de uma visão de autor é o que faz os melhores filmes de gênero. E Oeste outra vez é um deles.