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Aguardado desde sua estreia no 74º Festival de Berlim, onde ganhou o prêmio de direção, Cidade; Campo estreou na competição do 52º Festival de Cinema de Gramado trazendo uma infinidade de camadas de discussão devido à surpreendente estrutura, subversões de gênero e provocações temáticas.
Escrito e dirigido por Juliana Rojas (Trabalhar cansa, Sinfonia da necrópole e As boas maneiras), o longa trata de duas diferentes histórias que, apesar de independentes, estão sutilmente conectadas. Na primeira parte, Joana (Fernanda Vianna) é uma mineira que tenta recomeçar a vida em São Paulo, na casa da irmã e do sobrinho, após a tragédia de Brumadinho ter destruído a sua casa com toda a sua plantação. Na segunda, Flávia (Mirella Façanha) decide tomar as rédeas da fazenda do pai após a morte do mesmo e leva sua companheira Mara (Bruna Linzmeyer) para recomeçarem a vida no campo.
Enquanto As boas maneiras (último longa da diretora, de 2017) também lidava com duas metades bem diferentes, mas a partir de uma mesma história, Cidade; Campo assume por completo a premissa de duas tramas independentes para reforçar a ideia de dualidade que tanto interessa à cineasta, que propõe aqui uma reflexão nada óbvia sobre migração a partir do ponto de vista feminino.
No enredo urbano, particularmente, Juliana Rojas cria uma atmosfera melancólica que reflete bem o período pandêmico no qual o filme foi produzido e dialoga ainda com a dificuldade de encontrar perspectivas e realizações em um horizonte tão poluído (de várias formas), ao mesmo tempo em que a esperança e a delicadeza dos personagens confere ao filme uma sensibilidade bem particular. Na construção da relação da protagonista da primeira metade com o seu sobrinho e com suas amigas, Cidade; Campo representa um momento de maturidade estética impressionante, auxiliado por uma interpretação silenciosa e tocante de Fernanda Vianna.
Na parte rural, a diretora revela novamente as muitas grandes qualidades do seu cinema e enfatiza ainda mais um traço autoral que no primeiro ato estava apenas pela tangente: a relação com o fantástico. Ainda que Cidade; Campo não seja propriamente um filme de horror, como são Trabalhar cansa e As boas maneiras, ele utiliza os códigos do gênero tanto para a construção do clima soturno como lúdico e fabular. Assim como M. Night Shyamalan, Rojas utiliza a fantasia normalmente a partir de elementos mundanos e realistas que revelam suas propriedades etéreas. E aqui nesta história, isso aparece com maior intensidade conforme as duas protagonistas da segunda metade vão perdendo o controle de si e daquela terra.
A tragédia da trama que envolve Joana e sua tentativa de recomeço toca de maneira ainda mais forte neste período de 2024, sobretudo em um festival como Gramado, por conta da catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul, evidentemente, mas o peso fortemente sentido no filme de ter tido toda a sua memória apagada pela lama é contrastado e acalentado por imagens calmas que a diretora compõe em uma janela estreita, denotando um tom quase de conto. Mesmo que o segmento rural também remeta a essa ideia de um conto fantástico, o brilho do longa vem muito da exploração de momentos de afeto no meio da tristeza; na busca por um lar verdadeiro, nem que ele esteja representando em um montinho de terra.
O calcanhar de Aquiles de Cidade; Campo é, ironicamente, também sua força. A história na fazenda possui um arco de reconciliação com o passado e com a ancestralidade que é mais intuída do que propriamente verbalizada, o que é uma grande vantagem para que o filme não se torne refém de sua própria pauta. Mas algumas pequenas situações inusitadas, apesar da admirável ousadia estilística e narrativa, acabam soando como ruídos que distraem o espectador do drama. Sem dúvida, essa audácia da diretora em quebrar suas próprias convenções e ainda assim se manter fiel a um princípio fantasioso que permeia seu cinema é o que faz desse e de outros projetos dela absolutamente fascinantes e difíceis de tirar da cabeça.
Ao Viver, Juliana Rojas falou sobre seu interesse na fantasia e em como o gênero é utilizado por ela como ferramenta para lidar com temáticas sociais latentes no filme. "É um filme que eu tentei construir com muitas camadas, que tem uma temática principal que tem a ver com as relações afetivas desses personagens. Mas para mim é essencial haver o contexto político, sobretudo, nesse caso, relações de trabalho. Tem muitos códigos aqui que são universais, vida/morte, luto, recomeço, migração. Mas tem muita coisa também que é bem forte do imaginário brasileiro, então havia uma curiosidade da equipe de entender como seria a reação da plateia nessa chegada ao Brasil. Tem coisas, principalmente a questão da perda da casa da personagem da primeira parte, que o público estrangeiro pode até entender, mas não vai assimilar com o mesmo impacto como nós, que temos na memória recente todas essas tragédias de forma bem mais intensa", afirmou a cineasta.
"Trabalhar com Juliana é bastante rico e as camadas da história dela não são previsíveis, então o processo de 15 dias em São Paulo, lendo, trocando ideias e modificando algumas coisas, foi muito importante. Descobrimos muitas coisas juntas. O cinema é bonito por acontecer naquele momento e se transformar várias vezes. E é bonito como o set dessa geração um pouco mais jovem tem uma relação menos vertical do que quando trabalhei com alguns diretores mais velhos, que costumam deixar o ambiente mais estressante e tenso. Ela tem uma calma para trabalhar que é incrível e ajuda demaiso ator", comentou Fernanda Vianna, protagonista da primeira história.
Com a base sólida da recepção internacional e a passagem prestigiada agora no Brasil, o filme já entra em cartaz no dia 29 de agosto.