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Notícia de Divirta-se

DISCURSO DE ÓDIO

Documentário tenta explicar como o extremismo tomou conta do Brasil

Publicado em: 30/05/2023 10:31

 (Foto: Globo/ Divulgação)
Foto: Globo/ Divulgação
No primeiro episódio da série extremistas.br, um marqueteiro digital contratado para criar narrativas falsas digitais, explica: "Nossa função é criar o mal-estar, cada vez menos espaço pro debate real, cada vez criando um ambiente de mais mal-estar para o eleitor". Enquanto passeia por um condomínio durante o amanhecer, ele continua: "(...) o cara que me contrata, ele me contratou pra acabar com isso aqui, pra dizer que o síndico daqui não presta, que isso tá cheio de lixo. Aí venho aqui no momento que tá todo mundo limpando e falo que tá cheio de lixo. Sou contratado pra falar mal disso aqui".

Mais adiante, o marqueteiro, que também se diz estrategista de rede social, explica que sua função é criar indignação. Quando ela surge, é sinal de que o trabalho foi um sucesso. Ele admite que tudo é "criado" e avisa: "Eu gosto de fazer o que faço". Lançado em janeiro deste ano e dirigido por Caio Cavechini, o documentário dividido em oito episódios e produzido pela Globoplay é resultado de dois anos de pesquisa, escuta e observação de como os comportamentos extremistas tomaram conta da sociedade brasileira. "Confesso que ainda me assusto e me entristeço com a hiper segmentação de públicos, a criação de bolhas hoje praticamente impermeáveis a conteúdos divergentes", revela Cavechini.

Formado em jornalismo pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Caio Cavechini fez parte do Profissão Repórter, comandado por Caco Barcelos, e ficou conhecido pelo filme Carta para um ladrão de livros. O longa conta a história de Laéssio Rodrigues de Oliveira, um balconista de padaria que foi também um dos maiores ladrões de livros raros do Brasil. Cavechini assina ainda Marielle — O documentário, dividido em seis episódios, e o longa Cercados, uma compilação das performances de Jair Bolsonaro no cercadinho do Palácio do Alvorada, onde o ex-presidente recebia e destratava jornalistas.

Caio e os roteiristas já tinham tudo pronto para lançar extremistas.br quando aconteceram os ataques de 8 de janeiro, logo após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Diretor e roteiristas se organizaram para incluir os fatos mais recentes. O documentário acompanha a escalada da extrema direita no país e a tentativa de reações diversas da sociedade para combater as fake news, a desinformação e a construção de uma narrativa pautada pelo delírio, pela mentira e pelo ódio. Entre os entrevistados há nomes como Sara Winter, que participou de ataques incendiários ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, a empresária Rosângela Pessanha, fã incondicional de Jair Bolsonaro e Roberto Jefferson, e o Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), deputado federal ferrenho defensor do armamento da população e dono de um clube de tiro.

Há também entrevistas que tentam contrapor as ideias extremistas e violentas, como o pesquisador Pablo Ortelado, especialista em redes sociais, o deputado André Janones (Avante-MG) e sua proposta alternativa de milícia digital, e a dupla de universitários que idealizou o Slepping Giants, fundamental no combate ao discurso de ódio. "O documentário, ao se aprofundar em um tema difícil como o extremismo político, é em primeiro lugar um registro histórico, para o qual as pessoas poderão recorrer em diferentes momentos e com diferentes propósitos. O objetivo é sempre falar para todos os públicos, inclusive os radicalizados, tanto que demos voz a muitos deles, tentando entender suas motivações, mas fazendo os contrapontos necessários", explica o diretor, que conversou com o Correio sobre bolhas, negacionismo e papel da internet na produção e disseminação do discurso de ódio.

Entrevista: Caio Cavechini
 
Depois de fazer extremistas.br, o que mudou na tua visão da internet e, sobretudo, das redes sociais?

Confesso que ainda me assusto e me entristeço com a hiper segmentação de públicos, a criação de bolhas hoje praticamente impermeáveis a conteúdos divergentes. Se um dia eu vi a internet como um lugar onde um pouco de cada conteúdo podia estar disponível, agora vejo com espanto a capacidade das redes sociais alimentarem grupos muito fechados, oferecendo a eles só o que eles querem ver. Foi assim com o negacionismo na pandemia, foi assim com o negacionismo eleitoral e os atos antidemocráticos.

Que futuro é possível para a democracia se não houver regulação das plataformas de redes sociais?

Acho que estaremos cada vez mais presos em armadilhas de debates sobre problemas fictícios, pânico moral e espantalhos virtuais, que geram engajamento, mobilizam a opinião de uma minoria barulhenta a impedem o aprofundamento e mesmo uma necessária pedagogia sobre problemas mais complexos que o país e o mundo enfrentam. O aquecimento global me parece um desses temas deixados de lado: exige medidas cada vez mais urgentes e complexas, enquanto suas consequências são reais, mas difusas. As soluções deveriam ser debatidas dentro das nossas democracias, mas estamos longe de conseguir tirar os espantalhos do caminho para tornar esse tema o centro das nossas agendas.

A obrigação de moderação de conteúdo consegue frear a disseminação de discurso de ódio, crime e violência nessas plataformas?

Acho que sim, mas esse é um debate ainda em andamento em diferentes países, que exige não apenas a moderação das plataformas, mas o acompanhamento de entidades externas, da sociedade civil e do poder Judiciário.

Qual seria a melhor maneira de controlar a disseminação de fake news?

No curto prazo, regulação das plataformas e punição imediata dos responsáveis pelas publicações. Mas isso precisa estar acompanhado de um esforço gigantesco de educação em comunicação no médio e longo prazo, e sinto que ainda estamos longe disso.

Algumas sociedades são mais propícias a se engajarem no discurso do ódio? Educação digital faz diferença?

Sim, e não só a educação digital. Uma sociedade com mais leitores, por exemplo, tem mais capacidade de análise crítica, de não depender de uma única fonte de informação.

Como você explicaria a loucura que tomou conta da nossa sociedade, com advogados contra o estado de direito, militares contra a pátria, estudantes contra o ensino público, o povo contra a democracia, professores contra a educação?

No documentário, recorremos a especialistas e aos próprios operadores da propaganda política nas redes para tentar entender esse fenômeno. É inescapável o diagnóstico de que as redes sociais privilegiam conteúdos que geram indignação e pânico, e as teorias conspiratórias se encaixam perfeitamente nesse cardápio. Líderes políticos e influenciadores passaram a jogar esse jogo e inflamar suas audiências, em todos esses campos citados na pergunta — muitos deles com exemplos bem palpáveis ao longo da série.

Como o jornalismo foi afetado por essa onda? E qual o papel do jornalismo nesse cenário?

O jornalismo passou a ser alvo de ataques na medida em que não está a serviço de uma visão de mundo. Qualquer informação que desagrade um público radicalizado é absorvida como um disparo de uma guerra que esses grupos se veem travando, e que é preciso responder, na visão deles. Mas o mundo é muito complexo e eu tenho esperança de que as boas histórias, a boa contextualização dos fatos, a informação de qualidade uma hora ou outra jogam luz nos "túneis de realidade" vividos por algumas pessoas, como bem definiu um dos personagens da série. O desafio é que daqui para frente, as falsificações vão se tornar ainda mais sofisticadas tecnologicamente, exigindo ainda mais atenção dos jornalistas — e agilidade, para que as mentiras sejam enfrentadas antes que viralizem.

Como conversar com esse público que embarca nas fake news nessa situação de bolha em que não há espaço para a contradição?

Esse primeiro passo, ouvi-los atentamente, me parece importante para fazer com que gente que pensa igual consiga dar um passo atrás e se ver, a distância; como também para fazer com que gente que rejeita esse público perceba o tamanho do fosso que se abriu entre nós como sociedade, e que simplesmente negar uma parte dela não é um caminho possível para a volta da convivência. Claro que o comportamento violento deve ser coibido, punido. Mas existem demandas e comportamentos presentes de pessoas na nossa sociedade que estão se sentindo melhor acolhidas pelo discurso extremista, e elas não são necessariamente extremistas. É preciso um esforço cuidadoso de reaproximação, expondo pequenas contradições e estando aberto à escuta, sem cair no caminho da negação pura e simples, porque isso só facilita o trabalho dos que defendem a ideia de que somos inimigos em nosso próprio país.
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