Pernambuco.com
Pernambuco.com
Notícia de Divirta-se

Carnaval

Alvo de críticas, passinho é uma modernização de efervescências do Recife

Publicado em: 15/02/2020 11:30 | Atualizado em: 29/12/2020 22:29

Wagner Augusto e Max Oliveira, do grupo de passinho OSMLKDASZ, e Maycon Douglas Oliveira (centro), vencedor do Concurso de Passistas 2020 na categoria Juvenil II. (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Wagner Augusto e Max Oliveira, do grupo de passinho OSMLKDASZ, e Maycon Douglas Oliveira (centro), vencedor do Concurso de Passistas 2020 na categoria Juvenil II. (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)


As manifestações culturais que efervescem fora dos centros de poder estão sempre se atualizando coletivamente. A capoeira aparece como uma estratégia para negros escravizados disfarçarem movimentos de luta ensaiando dança. Essa mesma ginga era praticada nas saídas das bandas sinfônicas do carnaval do Recife, sob condenação moral da classe média e perseguição policial. "No começo do século 20, os populares começaram a suavizar esses movimentos da capoeira de acordo com o açoitamento das marchas, em uma tentativa de pacificar os encontros de agremiações. Isso deu origem aos passos do frevo", explica o historiador Leonardo Dantas Silva, autor do clássico Carnaval do Recife (relançado em 2018 pela Cepe).

O passo do frevo surge diante dessa ânsia por liberdade. Foi apropriado pela elite e pelo estado como identidade cultural e segue transcorrendo amplamente pelas multidões. Hoje, ao perambular por ruas e ladeiras do carnaval pernambucano, o passo divide espaço com o passinho, fenômeno ligado ao brega-funk que ganhou visibilidade no final de 2018. É o encontro do tradicional com o novo, do som orgânico das orquestras com os beats eletrônicos das caixinhas de som. Embora condenado por setores conservadores, sobretudo pelo teor sexual, o passinho opera em tradições seculares da nossa periferia. É uma efervescência que está no sangue, admitindo novas referências e estéticas no século 21. Eles mostram que desejo por liberdade não cessou.

Para entender o passinho é necessário contemplar a swingueira, dança que surgiu em Salvador com o pagodão baiano, variante do pagode que lembra o axé. No Recife, esse gênero teve representanção em bandas como Excesso de Bagagem, Ginga e Malícia ou Ourisamba. O "dançar" da swingueira tem como ápice um movimento em que os braços encostam violentamente na cintura, em torno da virilha. No passinho, esse gesto é repetido freneticamente, de acordo com beats eletrônicos estridentes. Esse potencial de modernização de tradições chegou à Bienal de Veneza, na Itália, e no Festival de Locarno, na Suíça, com a instalação audiovisual Swinguerra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. No projeto, o grupo recifense As do Passinho S.A entra em cena para refletir sobre a força que ritmos populares exercem sobre a juventude. 

Pedro Kuan, do OSMLKDASZ, e Maycon Douglas Oliveira. (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Pedro Kuan, do OSMLKDASZ, e Maycon Douglas Oliveira. (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)


Sofia Zanforlin é professora do Programa de Pós-Comunicação da UFPE e desenvolve pesquisas relacionadas a cosmopolitismos, negociação de pertencimentos e interferências culturais no espaço urbano. Ela explica que essas novas atualizações culturais são fruto do forte fluxo de informações do mundo contemporâneo. "Antes consumimos a cultura de forma mais limitada, precisávamos da chegada de discos ou revistas, por exemplo. Com a explosão das comunicações eletrônicas, a internet se tornou um vetor cultural. O nosso lugar no mundo é repensado a partir dessas associações de imagens, o que provoca uma assimilação por plataformas como YouTube ou Instagram".

Essa periferia urbana altamente conectada foi essencial para o "nascer" do passinho. A dança tem um forte poder viral nas redes, trazendo curtidas e seguidores para os praticantes, que se tornam influenciadores digitais. Essa cadeia viral conseguiu, em curto tempo, reforçar um sentimento de coletividade e identidade. 

"Também é interessante observar movimentos como o passinho transcendem o território. Há décadas, o território era marcador das identidades culturais, a exemplo do frevo com o Recife", aponta Sofia. "O forte fluxo de informações consegue criar um elo de transferência. O passinho, mesmo periférico, consegue absorver a swingueira da Bahia, o funk do Rio de Janeiro ou o street dance de São Paulo. Até mesmo indo visitar outras periferias da América Latina ou da África, é possível notar um diálogo entre essa nova geração ultraconectada que cria novas leituras de danças e de músicas. É uma nova percepção da tradição".

Gravações do clipe Caminho do Bem, de Nena e Shevckenko e Elloco. (Foto: Ualassay Cevidanes/Divulgação)
Gravações do clipe Caminho do Bem, de Nena e Shevckenko e Elloco. (Foto: Ualassay Cevidanes/Divulgação)


A cantora Nena Queiroga, homenageada do carnaval do Recife em 2018, é uma entusiasta entre a aproximação do frevo com o passinho. Em 2019, foi convidada por Jurema Fox, ligada à cena brega, para regravar o sucesso Chuva de sombrinhas, de André Rio, Nena e Beto Leal. Neste ano, surgiu um convite da dupla Shevchenko e Elloco para a regravação de Caminho do bem. "Sou da terra do Chico Science, diamante que veio da lama / Da terra do maracatu, do frevo e do caboclinho / Do ritmo dos beats dos moleques do passinho”, canta Schevchenko.

"Quando começou o passinho do Recife, achei incrível. Tem tudo a ver com uma efervescência natural. Os meninos às vezes não sabem, mas nós já bebemos dessa fonte. O passo está embutido em cada um", opina Nena. "Quando comecei a conhecer a turma do passinho, percebi que o frevo era algo muito distante para eles, assim como espaços como o Marco Zero. Essa segregação me incomodou, pois vivemos na mesma cidade". Em 2019, Queiroga incentivou a presença de dançarinos do passinho em apresentação junto com passistas no polo do Marco Zero durante o carnaval. "Uns ensinaram aos outros. Os meninos entenderam que o frevo era algo deles também. Foi muito emocionante".

Naturalmente, Queiroga foi alvo de críticas por essa aproximação. “Pessoas mais conservadoras do frevo disseram que eu estava me desvirtuado. Existe um preconceito por conta de algumas letras do brega-funk que desvalorizam a mulher ou incitam a violência, o que eu também desaprovo. As gravações que fiz não tinham nada disso, mas sim a força dos beats da periferia. Além disso, frevo precisa se manter vivo e chamar a atenção das crianças e do jovens, que precisam salvaguardar esse gênero. Eles só precisam de estímulo, pois se sentem muito afastados”.


Thiago Soares, pesquisador do brega e autor do livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: A música brega em Pernambuco (Outros Críticos, 2017), elucida que o preconceito está dentro de um processo histórico entre as expressões populares e a institucionalização. “O passinho é uma dança com uma carga negra e sexualizada, que tensiona o nosso olhar. Assim, as classes médias enxergam aquilo com desdém, um não reconhecimento das expressões ou até um entendimento de que aquilo é arruaça".

Para o professor, a visão das elites culturais é influenciada por um certo "olhar freyreano" sobre o popular. "É como uma Casa Grande que olha para a Senzala. Gilberto Freyre tinha um fascínio pela questão sexual, pelo corpo, mas ao mesmo tempo mantinha um viés moralista. Nesse sentido, o passinho não foge em nada do roteiro das relações de poder, raciais e de classe que permeiam as instituições e as periferias no Brasil”, diz Thiago, que é otimista sobre o futuro do movimento. "A era das redes sociais criaram um novo contexto, onde essas expressões talvez possam ser incorporadas com maior facilidade." E mesmo que a institucionalização não venha, o fenômeno deve continuar. O primordial é que todos sejam livres para dançar, seja passo ou passinho.

NAS FOTOS

 (Foto: Leandro de Santana/DP Foto)
Foto: Leandro de Santana/DP Foto


Maycon Douglas Oliveira tem 15 anos, é passista desde 2013 e venceu o Concurso de Passistas do Recife de 2020 na categoria Juvenil II Masculino. Ele também gosta de dançar passinho. “É uma dança que rende muito resultado nas redes sociais, onde posto vídeos dançando. Assim, ajuda a divulgar o frevo também”, diz.

O trio OSMLKDASZ, criado na comunidade do Entra Apulso, em Boa Viagem, é composto por Wagner Augusto, 16, Max Oliveira, 16, e Pedro Kauan, 13. "Estamos planejando lançar vídeos misturando passinho e frevo para o carnaval”, diz Wagner. "As duas danças podem resgatar as pessoas do mundo do crime, criando uma melhoria de vida. Nós somos testemunhas, pois temos amigos que largaram coisas erradas para dançar passinho", revela Max.
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.

Últimas

últimas

Quais as soluções para enchentes no Brasil? Conheça o modelo de cidade esponja
Quais impactos da visita de Xi Jinping ao Brasil?
Vários estados brasileiros estão dispostos a continuar aprofundando a cooperação com a China
Pesquisador comenta sobre conceito de comunidade de futuro compartilhado

Últimas notícias

últimas notícias

Grupo Diario de Pernambuco