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'Não há uma ameaça comunista como nos querem fazer crer', diz Arnaldo Antunes em entrevista

Publicado em: 19/02/2020 13:46 | Atualizado em: 19/02/2020 14:19

 (Foto: Marcia Xavier/Dvulgação)
Foto: Marcia Xavier/Dvulgação

"O real é a minha expectativa da sociedade em relação às coisas, é um estado de perplexidade. Eu vejo coisas absurdas serem defendidas, como a tortura, a intolerância à diversidade étnica, sexual e religiosa, a democracia sendo ameaçada. E os adversários políticos passaram a ser inimigos. Isso é um pesadelo, não há diálogo. No disco, eu convoco as pessoas reais a refletirem sobre temas que me são caros como a cultura, os indígenas, a natureza e o amor de pai e filho", anuncia Arnaldo Antunes, em entrevista ao Viver, sobre O real resiste, seu 18º disco, lançado no início deste mês.
 
No fim do ano passado, o clipe da faixa-título do álbum, que mostra violência policial e disseminação de preconceito no país para ilustrar uma composição que versa sobre milícia, tortura e terraplanismo, deixou de ser exibido no programa Alto falante, da TV Brasil, como já estava programado. O canal, que é do governo federal, confirmou a retirada do videoclipe de Arnaldo, mas afirmou que a decisão de mudar a programação foi para passar flashes da final da última Copa da Libertadores da América.

"Eu fiquei sabendo pelas redes sociais e encarei como uma forma de censura dentro de um veículo estatal. Mas a música seguiu sendo cantada, o clipe assistido e compartilhado nas minhas redes sociais, não deixou de ser exibido. De qualquer forma, é nefasta a tentativa de intervenção da reprodução de um produto musical", afirma o cantor.Em um trecho da música, o artista canta: "Miliciano não existe / torturador não existe / fundamentalista não existe / terraplanista não existe / monstro, vampiro, assombração / O real resiste / É só pesadelo, depois passa", diz o trecho da canção.

CENSURA
Durante o regime militar, Arnaldo teve uma de suas composições para os Titãs, Bichos escrotos, do disco Cabeça dinossauro, censurada nas rádios. Apesar de temer a ameaça de um retorno da censura, o artista acredita que o Brasil não deve vivenciar mais as restrições encontradas no período da ditadura.

"Eu espero que as instituições tenham freios e tenho a expectativa que a própria sociedade não deixe chegar no ponto que se chegou no período tenebroso e extremamente violento da história do Brasil. De qualquer forma, existem outros métodos de cercear a liberdade de expressão como os cortes de verbas para produção artística, restrição para realização de determinadas temáticas presentes nas obras", reflete.

Sobre se posicionar à esquerda ou à direita, Arnaldo é objetivo. "Não existe polarização, não há extremos. Só há um que é o que está no poder. Não há uma ameaça comunista como nos querem fazer crer. A grande questão hoje em dia é quem defende a democracia e quem nos ameaça."



O REAL RESISTE
Cuidadosamente construídos apenas com piano e instrumentos de cordas, os arranjos foram criados coletivamente por Cézar Mendes (violão), Daniel Jobim (piano), Dadi (guitarra, baixo e ukulele) e Chico Salem (guitarra e violão) nas gravações.

"Eu venho de um disco de uma pegada de rock e samba, com bastante programação musical e pesos rítmicos característicos, introduzidos por Curumim (baterista). Então, nesse álbum, eu busquei uma versão mais intimista, voltada para as canções. E as coisas que eu vinha compondo me levavam a esses instrumentos, em um registro sereno, com poucos elementos", explica Arnaldo. Assim como o anterior, RSTUVXZ, o novo disco foi gravado no sítio-estúdio Canto da Coruja, no interior de São Paulo.

 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação

Algumas das composições contam com a colaboração de Carlinhos Brown, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa. O álbum abre espaço para discussões como o amor, presente em De outra galáxia; a morte, em Termo morte; a questão indígena, em Dia de oca; e a relação com os filhos, cantada em Na barriga do vento; além da homenagem a João Gilberto, com a faixa João, em parceria com Cézar Mendes. Entre as dez músicas, duas contam com a participação da esposa, a artista plástica Marcia Xavier, e uma com a filha Celeste Antunes. Karine Carvalho, Caru Zilber e Ricardo Prado também aparecem em coros de canções. 

De acordo com o artista, a turnê de lançamento do álbum, com previsão de início para abril, será apresentada em uma configuração experimental: voz e piano, com o músico pernambucano Victor Araújo. Será uma configuração nunca explorada por Antunes, apresentando as canções do novo álbum com outras de várias fases da carreira do cantor, como Debaixo d’água, Lua vermelha, Socorro, Vilarejo, O seu olhar e Contato imediato.

A performance contará também com poemas falados, sussurrados e filtrados por efeitos. "Resolvi trazer um pouco do trabalho que apresento em minhas performances de poesia para o show, intercalando canções e poemas, fazendo uma ponte mais explícita entre essas duas frentes de minha produção", explica o cantor.

CARNAVAL
No ritmo do carnaval, o cantor destaca a participação no disco Orquestra Frevo do Mundo, produzido pelo pernambucano Pupillo, ex-Nação Zumbi. “Eu achei maravilhoso. Sou fã do Pupillo há muitos anos. O frevo é uma das coisas mais lindas que têm na música brasileira. É bom que tenha sido feita uma manutenção deste ritmo”, ressalta. O álbum repensa o ritmo através de um olhar pop e conta, ainda, com as colaborações de Caetano Veloso, Céu, Siba, Tulipa Ruiz, Almério, Henrique Albino, Duda Beat e Otto. No álbum, Antunes canta Ela é tarja preta, uma composição dele com parceiros. 

Perto dos 60 anos, Arnaldo olha para a carreira e para a trajetória de forma positiva e em eterno movimento. “Olhe, eu não consigo nem fazer um balanço”, brinca. “Mas é isso, eu não consigo falar do passado, estou sempre pensando em novos projetos. Atualmente, estou muito voltado para o lançamento do disco”, afirma. No segundo semestre, ele lançará um livro de poemas. “Sigo criando o tempo todo”, conclui.

TRÊS PERGUNTAS - ARNALDO ANTUNES
 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação


O Tribalistas se propõe a ser um movimento que se reúne, produz e se desintegra. Apesar de pedidos do público pela formação de uma banda, você, Marisa Monte e Carlinhos Brown seguem com suas carreiras solo e participações com outros artistas. Como lida com esses encontros e reencontros?
Em primeiro lugar, foi uma delícia poder sair juntos em uma turnê pela primeira vez, não só para o público, mas para nós também. No primeiro disco, não pudemos fazer shows porque a Marisa estava grávida. Nós temos uma relação muito fértil, seguimos compondo, realizando parcerias. Tribalistas é um sonho realizado. Não é uma conjunção que se repete e que dura. É um momento, um encontro. E, quando acontece, nos sentimos umsó, como nós dizemos na canção Um só. No palco, vimos isso virar realidade. Mas não temos previsão desse encontro voltar a acontecer. Mas, por hora, temos o plano de lançar um documentário com as imagens de ensaios, bastidores e shows.

A posse de Regina Duarte como secretária de cultura do país movimentou a classe artística, dividindo opiniões sobre a gestão. O que espera da gestão?
Eu não tenho expectativa nenhuma. Esse atual governo se mostrou inimigo da cultura, então a minha expectativa é zero em relação a alguma coisa positiva que possa vir a acontecer. Principalmente em relação à única coisa que nos salva, que é a cultura e a arte. Esse governo mexe negativamente com tudo que envolve os valores inaugurais de uma nação e tem uma relação direta com a sociedade, sejam artistas ou não.

Como enxerga a nova produção da nova geração musical no país
Vejo que a forma de veicular e reproduzir a música mudou completamente e isso influenciou na produção musical em maior escala. Mas, pelo que observo, há uma manutenção de um padrão de qualidade, inclusive em Pernambuco. Têm surgido novos nomes para dar seguimento ao trabalho iniciado por Lula Queiroga, Fred Zero Quatro e Chico Science e a Nação Zumbi, por exemplo.
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