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Notícia de Divirta-se

O MUNDO CANTANDO PARA PERNAMBUCO

Como a Segunda Guerra transformou a vida noturna do Recife

Publicado em: 08/08/2020 08:00 | Atualizado em: 25/09/2021 14:32

Dupla de dançarinas Stateside Stuff e violinista polonês Henryk Szernig foram algumas das atrações internacionais no Recife (Foto: Acervo DP)
Dupla de dançarinas Stateside Stuff e violinista polonês Henryk Szernig foram algumas das atrações internacionais no Recife (Foto: Acervo DP)

Canções dos ritmos blues, jazz e country ganham vida no palco de um clube repleto de mesas, onde militares estadunidenses conversam sobre os rumos da Segunda Guerra Mundial. Na janela, a paisagem noturna tem como destaque os reflexos dos postes de iluminação urbana no Rio Capibaribe. Estamos no Recife, mais especificamente na Rua do Sol, em Santo Antônio. No terreno onde posteriormente seria construída a Agência Central dos Correios, estavam instalados os dois andares do U.S.O Town Club, uma casa social inaugurada em outubro de 1943 para entreter as noites de soldados, marinheiros e fuzileiros norte-americanos radicados na capital pernambucana. O espaço acabou marcando uma nova fase da experiência do Recife com os shows internacionais.

Músicos e cantores como Cappy Lehrfeld, Sam Pearlman, Tom Rae, Big Templeton, Pat Gainor, Bill Crossman e as bandas Sophisticated Swingers e Southern Cruzaders foram alguns dos nomes que desembarcaram para realizar residências artísticas no clube. Em turnês, passaram nomes como o violinista polonês Henryk Szernig, a atriz Gertrude Dondero e a dupla de dançarinas Stateside Stuff. Em algumas vezes, esses artistas também se apresentavam no Teatro de Santa Isabel, onde podiam ser contemplados por um público mais numeroso.

Os nomes citados são poucos conhecidos hoje pois a cultura de massa sofreu uma revolução no pós-guerra, mas também porque existiam inúmeros U.S.O (sigla para United Service Organization) na América Latina, demandando um grande número de cantores, bandas e dançarinos. Os astros mais famosos da indústria do entretenimento estadunidense tinham missões mais pomposas e de grande propaganda. Alguns foram contratados por luxuosos cassinos do Rio de Janeiro. O livro A guerra dos artistas (2010), de Orlando de Barros, se debruça sobre esse tema.

"O Nordeste era visto como um trampolim perfeito entre a América e a África, o que despertou muito interesse dos norte-americanos quando o Brasil entrou na guerra, em 1942. Por isso, o Recife sediou a Quarta Frota Americana, embora hoje se fale mais da atuação em Natal", explica o historiador Leonardo Dantas Silva.

Matéria sobre a inauguração do U.S.O Town Club (Foto: Acervo DP)
Matéria sobre a inauguração do U.S.O Town Club (Foto: Acervo DP)

A inauguração do U.S.O no Recife causou um intenso burburinho. Reinaldo Oliveira, diretor geral do Teatro de Amadores de Pernambuco, tinha 13 anos quando os americanos chegaram na cidade e 15 quando a guerra acabou. "Era um clube muito fino e diferente, restrito aos militares estrangeiros. No entanto, a entrada de moças recifenses era permitida. Lembro que uma tia minha costumava frequentar com uma amiga", comenta o artista por telefone, aos 90 anos.

As moças precisavam preencher uma ficha e, após uma aprovação de uma comissão de senhoras, podiam frequentar o espaço. Bebidas alcoólicas não eram permitidas, afinal os rapazes estavam na cidade a serviço. A relação entre os americanos e donzelas pernambucanas foi até alvo do poema Boletim sentimental da guerra do Recife, de Mauro Mota: "Ingênuas meninas grávidas / O que é que fostes fazer? / Apertai bem os vossos vestidos / Pra família não saber".

O Diario de Pernambuco fez uma ampla cobertura sobre os eventos do clube. Os diretores do U.S.O eram Horton Clark e Hal Blum - esse segundo cuidava do U.S.O Beach Club, uma versão montada em Boa Viagem. Também existia o projeto U.S.O Mobile, que realizava festas determinados espaços em curtos períodos. No carnaval de 1944, foi realizada uma festa de "carnival no estilo Coney Island", bairro de Nova York, com jogos, danças, teatro de vaudeville e mágicas. Ao passar do tempo, iniciou-se uma maior integração com a sociedade civil. Gilberto Freyre e Aníbal Fernandes, articulistas do Diario, eram constantemente vistos no local. Freyre chegou a realizar uma palestra sobre cultura brasileira aos americanos.

Atriz Gertrude Don Dero no U.S.O e James Faust, líder do Southern Cruzaders (Foto: Acervo DP)
Atriz Gertrude Don Dero no U.S.O e James Faust, líder do Southern Cruzaders (Foto: Acervo DP)


Em maio de 1944, o clube anuncia um curso gratuito de “bailados” com a professora Paula Hoover, a primeira solista do Corpo de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo. Ela foi contratada para realizar audições e montar uma classe com cerca de dez moças que participariam de espetáculos. Também eram realizadas inúmeras competições de danças típicas (como a Barn Dance) com casais brasileiros, que ganhavam prêmios como isqueiros e broches de ouro. Em agosto, aporta no Recife o professor Enerst Richard Moore, que prometia ensinar inglês básico para a comunidade local com um método de 850 palavras.

Entre todos artistas, o mais presente talvez tenha sido a orquestra da marinha Southern Cruzaders, sob regência de James Faust, que tocava samba e vários outros ritmos latinos, tendo no currículo uma apresentação na emissora CBS. “Creio que a música do futuro será uma combinação do samba, da rumba e do jitterbug”, disse James, natural do Texas, em entrevista ao Diario em julho de 1944. “Não podemos dominar o samba com a mesma maestria dos brasileiros, pois vocês nasceram embalados por ele. Ficaríamos satisfeitos se conseguíssemos transportar o ritmo sem os exageros da sofisticação a que nos força o contato diario com o jazz. O ritmo do samba é triste e voluptuoso ao mesmo tempo".

Espaço interno do U.S.O Town Club (Foto: Acervo DP)
Espaço interno do U.S.O Town Club (Foto: Acervo DP)

Em janeiro de 1945, o Town inicia uma série de eventos chamada de Good Neighbor, com transmissão em rádios. Participavam artistas americanos e brasileiros, a exemplo de Sophisticated Swingsters, Miles Grina, Sam Pearlman, Maria Paristo, Ernani Dantas e Cappy Lehrfeld. Um desses eventos comemorou o aniversário de Olin D Johnson, então governador da Carolina do Sul. Em março de 1945, o Town e o Beach receberam a visita de Eleanor Roosevelt, a primeira-dama dos Estados Unidos. Ela ficou menos de 24 horas na cidade, mas teve direito a um jantar oferecido pelo interventor Agamenon Magalhães.

O historiador Frederico Toscano, que mantém a página O Recife e a II Guerra Mundial no Facebook, menciona que o governo brasileiro também criou o projeto similar ao U.S.O para os militares brasileiros: o Campina do Combatente. "A partir de 1943, o grupo Diários Associados de Assis Chateaubriand, do qual o Diario fazia parte, também fez esforço para juntar os EUA e o Brasil de maneira diplomática. Eles organizaram os Shows da Vitória, que receberam nomes como Ari Barroso, Dorival Caymmi e Grande Otelo."

Noite de canções, acrobacias e bailados no Town Club, em 27 de agosto de 1944 (Foto: Acervo DP)
Noite de canções, acrobacias e bailados no Town Club, em 27 de agosto de 1944 (Foto: Acervo DP)


Com o fim da Segunda Guerra em setembro de 1945, os U.S.Os começam a ser desativados gradualmente. O Town Club foi um dos últimos, já que a nota de fechamento foi oficialmente publicada no Diario em abril de 1946. Em junho daquele mesmo ano, o prefeito Pelópidas Silveira desapropriou o prédio. "A estrutura do Town Club foi deixada para o Brasil, mas por algum motivo o governo decidiu demolir para construir o prédio dos Correios, que já era um projeto antigo", diz Frederico Toscano.

Em seguida, chega ao Recife a influência do Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the American Republics, um órgão criado para fazer com que os governos latinos apoiassem os Estados Unidos na Guerra Fria, difundindo uma intensa propaganda do american way of life nos meios de comunicação do Recife.

A partir daí já se conhece a forte presença americana no nosso imaginário cultural. E aquele clube com vista para o Capibaribe serviu como uma espécie de embrião. Nas décadas seguintes, mais atrações internacionais aportaram no estado. Suas histórias serão contadas nos próximos textos da série de reportagens O mundo cantando para Pernambuco, que visa desvendar como foram os shows internacionais em Pernambuco no século 20.

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