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Fruto da redemocratização, Vale Tudo refletiu sobre a moral brasileira

Publicado em: 22/07/2020 13:33

Raquel Accioli (Regina Duarte) e Maria de Fátima (Gloria Pires), protagonistas de Vale Tudo (Foto: TV Globo/Divulgação)
Raquel Accioli (Regina Duarte) e Maria de Fátima (Gloria Pires), protagonistas de Vale Tudo (Foto: TV Globo/Divulgação)

No Brasil, a telenovela se tornou um dos agentes centrais no debate sobre a cultura e a identidade do país, também servindo como registro histórico de determinados períodos. Nesse sentido, um dos melhores exemplos é Vale tudo (1988), folhetim escrito conjuntamente por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e dirigido por Ricardo Waddington e Paulo Ubiratan. No final da década de 1980, o Brasil respirava ares democráticos após 21 anos de regime militar, mas enfrentava uma forte crise econômica e moral. Na última segunda-feira, a novela entrou no catálogo da GloboPlay, serviço de streaming da Globo, e causou frenesi, seja para rever ou assistir pela primeira vez.

Também fala-se muito sobre a atualidade da obra, uma característica exaltada pelo próprio conteúdo de divulgação da emissora. A trama é amplamente conhecida. A jovem inescrupulosa Maria de Fátima (Gloria Pires) vende a única propriedade da família no Paraná e foge para o Rio de Janeiro, onde passa a seduzir o milionário Afonso Roitman (Cássio Gabus Mendes). Sua mãe, a íntegra Raquel Accioli (Regina Duarte), vai atrás da filha e passa a vender sanduíches na praia para sobreviver. Mas afinal, por que Vale tudo é tão ovacionada, continua tão contemporânea e está sendo revisitada?

"O processo de redemocratização escancarou alguns fenômenos que estavam ocultos, como a corrupção. Vale tudo se preocupa em falar justamente sobre isso, carregando o compromisso de discutir o Brasil com os brasileiros. Isso é muito assumido pelas novelas, que costumam discutir questões sociais a partir de temas aparentemente domésticos", conta Cecília Almeida, professora do departamento de comunicação da UFPE e membro da Obitel - Rede Brasileira dos Pesquisadores de Ficção Televisiva.


"Vale tudo foi um divisor de águas no sentido de discutir a realidade brasileira sem recorrer a cenários fantásticos e contrariando algumas convenções do gênero novelístico, como a inserção de personagens que fugiram da dicotomia do bem e do mal. A única pessoa totalmente íntegra é Raquel, que tem uma jornada de heroína em meio a vários personagens corruptos. Os vilões, aliás, não tiveram finais punitivos. Basta lembrar da clássica cena do Reginaldo Faria fugindo de avião e dando uma banana para o Brasil. Maria de Fátima foge com um príncipe italiano. Os autores queriam criticar essa impunidade do Brasil. Isso é inovador até para os parâmetros atuais".

Thiago Soares, professor do departamento de comunicação da UFPE, diz que a redemocratização retomou um processo de autorreflexão sobre o que é o Brasil. "Isso se relacionou com produtos da cultura pop, basta lembrar que tivemos o primeiro Rock in Rio em 1985. O que seria ser brasileiro nesse mundo livre, capitalista e global? A novela vai ser um lugar para o Brasil tentar se entender sem fatores externos. Vale tudo é uma tentativa de refletir sobre a moral brasileira. Assistindo atualmente, é possível enxergar bem melhor uma questão de classe. Ela tem uma perspectiva de que o fosso moral brasileiro reside na luta de classes. Embora seja meio estranho falar isso, é uma novela com um certo perfume marxista. Os ricos são os vilões."

Para Soares, Vale tudo colaborou com a construção de um clima nacional que permitiu a eleição de Fernando Collor em 1990, um ano após o fim da exibição do folhetim. "A novela esgarça essa ideia de que o Brasil é corrupto e que é preciso que algo aconteça, pois é profundamente injusto continuar nesse sistema. Esse sentimento está muito retomado na cultura brasileira, quando precisamos nos tornar uma nação justa. Collor era o caçador de marajás. São narrativas perigosas que sempre evocam um salvador da pátria, como também ocorre novamente com Bolsonaro. Esse é um dos fatores que tornam a novela muito atual."

A clássica vilã Odete Roitman (Beatriz Segall) (Foto: TV Globo/Divulgação)
A clássica vilã Odete Roitman (Beatriz Segall) (Foto: TV Globo/Divulgação)

A característica de burlar o "politicamente correto" em discursos, outra pauta atual, também se faz presente na novela com a clássica vilã Odete Roitman (Beatriz Segall), diretora da Companhia Aérea TCA. “Ela é a expressão da pessoa que fala o que muitos gostariam de falar, mas não conseguem. Odete representou uma elite que tinha certo ranço do próprio Brasil, que considera que a pobreza deveria simplesmente evaporar do país. Ela acabou sendo muito marcante", diz Cecília Almeida.

Odete, aliás, protagonizou o primeiro grande mistério sobre assassinato na reta final de um folhetim. De acordo com a doutoranda Joana d'Arc de Nantes, que pesquisa sobre novelas na Universidade Federal Fluminense, a primeira novela a trazer essa característica no Brasil foi  Sheik de Agadir (1966), de Gloria Malgadan, mas os autores de Vale tudo souberam construir um contexto inédito, que parou o Brasil. "Esse foi um folhetim muito bem trabalhado, misturou diversas questões com uma fórmula diferenciada, fruto do trabalho de três autores."

Joana d'Arc de Nantes também comenta sobre o termo "reassistividade", cunhado pelo teórico estadunidense Jason Mitchell, que aborda sobre uma revisitação a obras ficcionais seriadas já exibidas. "Existem inúmeros fatores que envolvem o desejo de revisitar uma trama antiga no contexto atual. Por mais que Vale tudo aborde a realidade negativa do Brasil, ela também nos transporta para um contexto nostálgico dos anos 1980. O momento de pandemia desperta um desejo de escape nas pessoas, por isso essa estratégia do Grupo Globo está tendo sucesso. Os consumidores revisitam novelas para relembrar determinada época ou compartilhar aquela narrativa que fez tanto sucesso com um filho ou um amigo mais jovem, por exemplo", finaliza.
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