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Patrimônio

Em vida, Mestre Aprígio fabricou 'coroas' para Gonzaga, Dominguinhos e mais

Publicado em: 28/07/2020 18:23 | Atualizado em: 29/07/2020 20:11

 (Foto: PH Reinaux/Secult-PE/Fundarpe)
Foto: PH Reinaux/Secult-PE/Fundarpe

Na década de 1970, Luiz Gonzaga partia do Rio de Janeiro com uma grande peça de couro na mala. O produto tinha um destinatário: José Aprígio Lopes, já conhecido em todo o Nordeste como Mestre Aprígio. A fama do artesão do couro era tamanha que o Rei do Baião lhe confiou o desafio de produzir peças de roupas que seriam usadas em shows. O encontro foi em frente ao Hospital Agamenon Magalhães de Serra Talhada, no Sertão do Pajeú. Aprígio tirou as medidas de Luiz e, diante de tamanha responsabilidade, passou duas semanas idealizando os moldes. O resultado agradou, e Aprígio fez cerca de 50 peças para o Mestre Lua, incluindo uma vestimenta usada no encontro de Gonzagão com o Papa João Paulo II, em 1980, em Fortaleza.

Naturalmente, nomes como Dominguinhos, Alcymar Monteiro, Santanna, Waldonys, entre outras realezas do forró também encomendaram peças. "Meus chapéus serviram de coroa para os dois grandes reis que conheci, Luiz Gonzaga e Dominguinhos", costumava dizer o artesão, que faleceu aos 79 anos durante a noite desta segunda-feira (27), após passar oito dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional Fernando Bezerra, em Ouricuri, no Sertão do Araripe. De acordo com o filho Romildo Aprígio Lopes, José deu entrada no hospital com sintomas da Covid-19. O artista chegou a realizar um teste para a Covid-19, que teve resultado negativo. Um segundo teste foi realizado, mas o resultado deverá ser divulgado dentro de quatro dias. Ele sofria de hipertensão e doença crônica no pulmão.

Não houve velório. O sepultamento ocorreu na manhã desta terça-feira (28), no Cemitério de Ouricuri, município onde o artista viveu seus últimos dias. Mestre Aprígio deixou a esposa, dois filhos e três netos. Pela considerável contribuição para a formação cultural dentro do seu território, foi eleito pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural como um Patrimônio Vivo de Pernambuco em 16 de agosto de 2019. Mestre Saúba, Maracatu de Baque Solto Cambinda Brasileira, Mestre Nado, Assis Calixto e Tribo Indígena Carijós do Recife foram os outros artistas agraciados na mesma leva.

Luiz Gonzaga utilizando uma das peças de Mestre Aprígio em encontro com o Papa João Paulo II (Foto: TV Grande Rio/Reprodução)
Luiz Gonzaga utilizando uma das peças de Mestre Aprígio em encontro com o Papa João Paulo II (Foto: TV Grande Rio/Reprodução)

José Aprígio Lopes nasceu em Exu, já no Sertão do Araripe, em dia 25 de maio de 1941. O seu pai era dono de um pequeno sítio, onde o menino ajudava a criar animais e cuidar da vegetação. O estudo formal lhe era negado pela família. Ainda na infância, ele costumava recolher retalhos de couro descartados por um sapateiro popular na comunidade. Nos intervalos de trabalho na roça, já adolescente, começou a fazer suas primeiras peças de couro com cola, faquinha, esmeril e compasso.

"Eu via as peças de couro feitas por outros: chapéus, enfeites, bainha de faca, de facão, essas coisas que fazendeiro usa, e tentava imitar. A primeira peça boa foi um pé de alpargata", contou Mestre Aprígio em entrevista para a jornalista Michelle Assumpção, no Portal Cultura PE, nas vésperas de receber o título de patrimônio. Aos 19 anos, o pernambucano já começava a seguir exclusivamente o ofício que aprendeu instintivamente. Foi quando um amigo do pai o convidou para trabalhar em uma oficina de ouro em Crato, no Ceará. 

Apesar da vaga ser inicialmente temporária, o jovem juntou seus pertences e seguiu para o outro estado nordestino. José passou três meses na oficina do seu Juarez, com quem aprendeu a fazer várias peças para vestimentas de vaqueiro, além das celas. O seu talento ecoou pela região, ocasionando em novos convites em seu estado de origem, mais especificamente em Serra Talhada, no Sertão do Pajeú. Assim, seu cotidiano passou a se dividir entre Ceará e Pernambuco.

Em 1979, quando já residia em Ouricuri, a fama do artesão do couro chegou a Luiz Gonzaga, que inicialmente desejava um gibão novo. Quem fez a mediação entre os artistas foi Josseí, sobrinho de Aprígio. Foi em Ouricuri que Aprígio trabalhou até os últimos anos. Localizada na Rua Fábio Lins, no Centro, a loja Arte Couro vende chapéus, além de sandálias, bolsas e calçados. O filho Romildo também passou a dedicar-se ao ofício do couro. Juntamente com Isídio Lopes, que também trabalha na loja, ele deve carregar essa tradição visceral da cultura nordestina.

Homenagens
Mestre Aprígio, Santanna, o Cantador e Romildo Aprígio (Foto: Cortesia)
Mestre Aprígio, Santanna, o Cantador e Romildo Aprígio (Foto: Cortesia)

"Seu Aprígio usou o couro para contar uma história. A história de um povo guerreiro, um povo valente, um povo que chora, ri e se alegra”, diz o forrozeiro Alcymar Monteiro. "É uma perda imensa para todos os que o conheceram e, principalmente, divulgaram sua obra pelo Brasil e pelo exterior, como modestamente fiz.. Meus pêsames para sua família e amigos. E um pedido aos seus filhos: não deixem a memória do seu pai ir embora. Preservem o artesanato de couro, que ele é vital para nossa cultura."

"Ele sempre fazia os meus chapéus de couro, sempre que queria alguma novidade, ia lá pegar com ele”, conta Santanna, O Cantador. “Certa vez, estava em seu ateliê observando os chapéus e gibões que ele fazia para Luiz Gonzaga e percebi que haviam umas esferas com uns raios dentro. Eu perguntei a ele: ‘Seu Aprígio, esse símbolo… O senhor sabe o que é?’ Ele respondeu: ‘Não, eu imaginei que isso fosse o sol’. Eu falei que era o símbolo da bandeira dos ciganos. Acredito que ele fazia intuitivamente o símbolo, que tem muito a ver com a cultura nordestina, a cultura judaica nordestina. Pernambuco realmente perdeu um grande valor, vai fazer muita falta, um grande mestre no que fazia, um grande artesão e amigo da gente. E eu peço que ele siga a luz".

 (Foto: Jan Ribeiro/Fundarpe)
Foto: Jan Ribeiro/Fundarpe

O governador de Pernambuco, Paulo Câmara, também lamentou a morte do artesão: "O convívio com os vaqueiros desde a infância, no Sertão pernambucano, e seu grande talento para o artesanato, fizeram do Mestre Aprígio um dos maiores artistas brasileiros no trabalho com o couro. Autor de lindas peças, seus chapéus, gibões e sandálias vestiram nomes como Luiz Gonzaga, Gonzaguinha e Dominguinhos, entre tantos outros. Eleito Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2019, seu legado permanecerá como uma referência indelével no cenário artístico e cultural do nosso Estado. Quero me solidarizar com seus familiares e amigos neste momento de dor", lastimou.

A Secult/Fundarpe também divulgaram uma nota de pesar: "Ele ficou famoso pelo trabalho como artesão em couro, que encantou gente como Luiz Gonzaga e Dominguinhos.  Escolhido em 2019 pelo Governo de Pernambuco como Patrimônio Vivo do Estado, Mestre Aprígio possuía um ateliê em Ouricuri, no Sertão do Araripe, terra que escolheu para desenvolver seu trabalho. Chapéus de couro, jibões, perneiras, sandálias e bolsas eram sua especialidade, com destaque para a indumentária do vaqueiro. Aos familiares, amigos e admiradores, deixamos a nossas condolências e nossos mais sinceros pêsames."

O deputado Eriberto Medeiros, presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco, também prestou condolências: "Pernambuco perde, hoje, uma referência para uma arte que define bem a nossa cultura popular. Nascido no Exu, Sertão do Araripe, o artesão Mestre Aprígio costurou durante toda a vida peças em couro, usando seu dom para vestir nossos vaqueiros, desde os mais humildes até os reis, como Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Nosso Estado teve a grandeza de reconhecer seu trabalho, concedendo-lhe o título de Patrimônio Vivo. Que Deus lhe receba em seus braços e que console seus familiares e amigos."
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