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'O trap é a expressão mais livre do hip hop', diz Ice Blue, do Racionais MC's. Confira a entrevista

Publicado em: 05/10/2019 13:21 | Atualizado em: 16/10/2020 23:47

 (Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação)
Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação


Entre as décadas de 1950 e 1980, as periferias do Brasil ficaram mais parecidas com as que conhecemos hoje, sobretudo no Sudeste. Um processo de urbanização intenso e desordenado trouxe consigo a violência, a falta de acesso a serviços básicos e uma evidente ausência do Estado. Foi nesse contexto, há três décadas, que quatro jovens de São Paulo, uma das megalópoles mais globalizadas da América Latina, se apropriaram da estética do hip hop norte-americano para falar de seus problemas. Lá fora, o estilo já fazia sucesso com nomes como Public Enemy. No Brasil, no entanto, foi o Racionais MC’s quem deu o passo inicial do rap.

Neste sábado (5), o grupo composto por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e DJ KL Jay desembarca no Recife com a turnê comemorativa de 30 anos de carreira. Será no Classic Hall, em Olinda, com abertura de Luiz Lins e DJ Karla Gnom, a partir das 23h. O repertório passeia pelos quatro álbuns de estúdio do projeto que estimulou e acompanhou as mudanças do rap nacional. Para dialogar com o atual cenário do gênero, o show terá uma pegada mais “dançante” e “black music”. “No Nordeste, o Recife é uma das cidades que sempre tiveram mais proximidade com o grupo. As expectativas de tocar aí sempre são grandes”, diz Ice Blue, em entrevista ao Viver.

Atualmente o rap tem espaço no mainstream com nomes como Emicida, Criolo, Baco Exu do Blues ou Djonga, mas nem sempre foi assim. O Racionais emergiu em uma cena bastante underground, que tinha com principal ponto de encontro o Largo do São Bento, um dos espaços públicos mais antigos da capital paulistana. Quem apostou as fichas no projeto foi o produtor cultural Milton Salles. Em 1990, eles estreiam com EP Holocausto urbano, que tem como maior clássico a faixa Pânico na zona sul, um relato cru do cotidiano caótico vivido na periferia.

Ice Blue (Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação)
Ice Blue (Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação)


O primeiro álbum de estúdio foi Radio X do Brasil (1993), mas o ápice artístico e midiático chegaria com Sobrevivendo no inferno (1997), disco essencial para entender a história da música brasileira e que entrou para a lista de obras obrigatórias do vestibular da Unicamp. Foi quando o grupo apostou em arranjos instrumentais mais trabalhados, com bases sampleadas que ajudaram a criar um ambiente cinematográfico. “Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras [...] A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”, diz o marcante começo de Capítulo 4, versículo 3, um dos hinos do álbum. Diário de um detento, inspirada no massacre do Carandiru, foi um sucesso absoluto na MTV Brasil.

Apesar do êxito, Racionais sempre foi conhecido por ser um persona antimídia. Recusou, inclusive, vários convites da Rede Globo para aparições em seus programas, algo que ajudou a construir uma aura enigmática em torno do grupo. “Isso era necessário, pois a mídia não tinha dois lados como hoje”, conta Ice Blue. “O Brasil passava por um momento em que as instituições eram totalmente contrárias às questões ideológicas do grupo. Não tínhamos como nos defender caso os veículos alterassem nossas entrevistas. Hoje, com as redes sociais, é possível refutar”.

De fato, atualmente o cenário é outro. Grande parte dos rappers que movimentam fortunas com shows e streaming criou uma relação direta com o público através das redes. A cultura digital também facilitou o acesso à produção musical, incorporação de novas referências e colaborações. Ice Blue diz que o rap vive seu ápice “pela democracia da distribuição e produção”. “Eu não preciso viajar para Salvador, Fortaleza ou Belo Horizonte se quiser conhecer e gravar com algum outro rapper. Estamos todos distantes e próximos ao mesmo tempo. Isso foi uma evolução para a música”.

 (Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação)
Foto: Klaus Mitteldorf/Divulgação


Recentemente, o hip hop também vem assistindo à ascensão do trap, um subgênero representado por nomes como Matuê (CE), Raffa Moreira (SP) e NexoAnexo (PE). Eles apostam em letras de cunho menos social, com batidas mais eletrônicas e rimas melódicas. Trata-se de uma estética pop e comercial que divide opiniões. "Se você analisar os meninos que fazem o trap, vai perceber que eles são de outra geração, mais preparada e estudada. Então suas questões ideológicas aparecem de outras formas. É uma nova maneira de ver a rua, com diversão. Isso é bom também, pois ninguém é obrigado a falar apenas de problemas ou tristeza. O rap está vez mais livre. E o trap é a expressão mais livre dentro dessa escala", opina.

Apesar de toda essa evolução cultural e musical, os problemas sociais presentes nas rimas de Sobrevivendo no inferno ainda persistem, como o tratamento da segurança pública estatal com as favelas. Com a guinada conservadora nas últimas eleições, temas como a ampliação o conceito de legítima defesa para os casos de homicídios cometidos por policiais se tornaram uma pauta de capital político. “Acredito que as pessoas que votaram nos atuais líderes devem estar satisfeitas com essas políticas. Nós sempre pregamos a liberdade de expressão e o povo escolheu. Agora vamos pagar o preço e ver a conclusão de onde chegaremos", diz Ice.

Episódios como a recente prisão do produtor do funk carioca Rennan da Penha também abriram uma discussão sobre a tentativa de criminalizar manifestações da periferia - a Justiça acusa o músico de ser olheiro do tráfico no Complexo da Penha, enquanto o cenário do funk enxerga uma tentativa de acabar com os bailes na região. “Existem as pessoas que estão querendo levantar bandeiras da ‘quebrada’, e as que estão querendo impedir isso com discursos de “apologias”. Se você fala de maconha, está fazendo apologia à droga. Se você crítica a polícia, está incitando o ódio aos policiais. Vários artistas passaram por isso, inclusive nós. Precisamos nos proteger diante disso tudo. Vivemos um momento que não dá para falar de qualquer coisa. Temos leis para mulheres, homossexuais, e a forma de criação tem que trabalhar dentro dessas questões. É um grande exercício”, finaliza o rapper.

SERVIÇO
Turnê Racionais 3 Décadas, com Racionais MC's, Luiz Lins e Karla Gnom.
Onde: Classic Hall (Av. Agamenon Magalhães, S/N, Salgadinho).
Quando: neste sábado, ás 23h30.
Quanto: R$ 140 (pista), R$ 70 (meia) e R$ 70 (social).
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