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Moçambicana que escreveu as vivências na guerra racial vem à Bienal Pernambuco. Confira a entrevista

Publicado em: 04/10/2019 11:06 | Atualizado em: 17/10/2020 00:09

Isabel Figueiredo (Foto: Divulgação)
Isabel Figueiredo (Foto: Divulgação)


A moçambicana Isabela Figueiredo, filha de um português, cresceu em meio à guerra racial que assolou a capital Lourenço Marques (atual Maputo) entre 1964 e 1974. O conflito pela independência do país era protagonizado pela Luta Armada de Libertação Nacional e as Forças Armadas de Portugal. Aos 12 anos, a menina voltou para Portugal em um grupo chamado de “retornados”, composto por 600 mil portugueses que até então viviam nas colônias do continente africano. Sempre existiu certo tabu em revelar as atrocidades do período, mas o que Isabela presenciou nunca saiu de sua cabeça.

Em 2008, ela começou a materializar as lembranças do período no livro Caderno de memórias coloniais, lançado no ano seguinte. A publicação, que no Brasil tem selo da editora Todavia, logo se tornou um clássico para refletir sobre a relação pós-colonial dos países ocupados por Portugal. Chegou a ser discutido em universidades, mas também causou desconforto entre portugueses por soar como uma traição. Grande parte das reflexões sobre o colonialismo feroz está centrada na figura do pai da autora, um eletricista que catalisa a desigualdade social e racial daquele cenário.

Isabela, que vive em Portugal desde 1975, participará da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco neste domingo, às 15h, quando discutirá sobre os 10 anos do Caderno. Sua vinda dialoga com a temática do evento, reconhecendo artes e cultura como linha de frente na resistência da crise do mercado editorial e das instituições culturais como um todo. O evento começa nesta sexta-feira (4) com uma extensa programação (confira programação completa da bienal no bienalpernambuco.com.br). Em entrevista ao Viver, a autora fala do amadurecimento da obra, similaridades entre as colônias de Portugal e forças neocolonialistas que ascendem no mundo.

ENTREVISTA - Isabela Figueiredo, escritora
Capa do Caderno (Foto: Editora Todavia/Divulgação)
Capa do Caderno (Foto: Editora Todavia/Divulgação)


Qual foi o despertar para escrever o Caderno de memórias coloniais, há dez anos?
Foi quando eu estava fazendo psicanálise após a morte de meu pai, mas a história amadureceu dentro de mim durante longas décadas. Eu já queria escrevê-lo quando ainda estava em Moçambique e tinha apenas 12 anos. Lembro-me de ter tido esse pensamento nessa idade. É um pouco difícil de explicar como é que uma menina tem o desejo de escrever essa história, mas eu a tive a noção clara de que vivia momentos graves e importantes que não poderiam ficar silenciados. Talvez o fato de ser uma leitora compulsiva mesmo naquela idade tenha me influenciado. Quando era menina e pensava "um dia tenho de escrever isto". O livro não tinha nome. Durante muito tempo não teve. Era a minha história secreta. Esteve para se chamar "o meu pai", mas depois pensei que o meu pai era o colonialismo e vice-versa.

Sua compreensão sobre o livro amadureceu nesses dez anos?
Em parte, sim. O Caderno é uma obra para ir descobrindo a vida inteira. A minha infância está ali. É o meu chão, a minha família. Penso que é um livro que eu pode ler mil vezes e sempre descobrir nele novas camadas, novas leituras. Há nele muita intuição e também muita condensação de emoções complexas, muito intensas. É um diamante em bruto. Na altura em que o escrevi era urgente libertar-me daquela memória que carregava em silêncio. Queria derrubar aquele fardo. Eu quase voava enquanto o escrevia. Escrevi a alta velocidade, vorazmente, em fogo, atravessando o tempo, a memória, o amor, a dor, a perda de quem me deu a vida e tanto amei. Uma década passada, contemplo o Caderno ainda boquiaberta. Como é que isto saiu de mim? Continua poderoso como no dia em que o terminei. Continua a emocionar-me. Muitas vezes as pessoas colam excertos do Caderno nas redes sociais. Eu leio e penso "Meu Deus, isto é muito bom", e só um segundo depois percebo que é meu, que fui eu que escrevi. Tem graça, não tem?

Como foi vivenciar aquele cotidiano de Moçambique na década de 1970?
Foi horrível, tanto o colonialismo como a descolonização. A minha memória de infância e do início da adolescência é uma amálgama de cenas violentas e de sentimentos de perplexidade e receio perante a injustiça e brutalidade, impiedosas, que fui testemunhando ao longo desse tempo. Primeiro do lado português, colonialista, no qual incluo o meu pai, depois do lado africano, do movimento de libertação africana, contra pessoas como o meu pai. E eu estava lá no meio, enquanto menina branca privilegiada, conotada com o lado dos maus da fita. Vivi no meio de muita violência física, verbal, emocional, que sempre me atingiu, mesmo quando não me foi dirigida. Eu diria que a minha memória da violência colonial está relacionada com pancada dada a frio, a soco, com o punho. Também com o constante desmerecimento verbal da cultura negra.

Moc%u0327ambique durante Guerra da Independência (Foto: Reprodução da Internet)
Moc%u0327ambique durante Guerra da Independência (Foto: Reprodução da Internet)


No Caderno, seu pai é um personagem que serve como ponto de partida para discutir diversas problemáticas da colonização. Foi doloroso reviver aquelas características sociais do seu pai?
Eu diria que foi doloroso viver com as características racistas e conservadoras do meu pai enquanto ele foi vivo. Quando me tornei adulta, isso foi uma grande fonte de desentendimento. Foi muito difícil amar um homem cuja ideologia eu não podia tolerar. Penso que, para ele, tenha sido igualmente difícil encarar a mulher que me tornei, politicamente.

Portugal ainda mantém uma relação com as ex-colônias do continente africano?
Acho que Portugal gostaria de manter relações muito mais fortes com as suas ex-colônias africanas do que mantém, mas a memória do colonialismo está ainda muito viva em África, portanto as relações ficam ao nível do afeto frio, artificial e diplomático. As ex-colônias não têm interesse nos portugueses. Não têm boa memória e temos de respeitar isso. Estamos ligados por artérias que a história construiu e que já não podem ser cortadas, mas nas quais corre veneno. Eu gostaria de pôr a circular nessas artérias um remédio para limpar o veneno, mas penso que ele virá com o tempo, com a ação das novas gerações.

Consegue enxergar quais as principais similaridades entre as colônias de Portugal? Existem peculiaridades em relação a outros colonizadores da Europa?
O colonialismo foi muito eficaz nessa herança que deixou. Se eu despir a África atual ou o Brasil do que os colonos deixaram resta o quê? O que existia antes da chegada do colonialismo português ou de qualquer outra origem foi apagado, transformado, perdeu-se. Portanto, os povos colonizados vivem um pouco como eu, tentando perceber o que são, como podem posicionar-se na vida, no mundo, como podem adaptar-se a algo que não é bem a sua origem mas que também a contém e que é, sem dúvida, a sua atualidade. Neste ponto, todas a ex-colónias portuguesas estão juntas. Muito honestamente, penso que não existem. Colonialismo é exercício de poder à força, é erradicação de cultura sem olhar a meios e nisso somos todos peritos quer sejamos alemães, portugueses, ingleses, franceses ou espanhóis. Eu sinto-me diferente dos alemães e dos espanhóis, claro. Bastante. Mas sei ser muito alemã ou muito espanhola se o contexto o exigir. Ora, os colonizadores eram seres humanos fracos, como eu.

Diante dessas outras colonia lusófonas, como o Brasil se diferencia?
O Brasil é um caso especial apenas em termos linguísticos, porque a língua portuguesa é não apenas oficial, mas efetivamente usada por todos, o que não acontece na África. Em Moçambique, o português continua sendo uma língua de comunicação, para facilitar as transações. O número de pessoas que fala português é muito reduzido porque a escolarização é deficiente. No Brasil, acontece um fenômeno que a certa altura nos vai separar, que é o português do Brasil está evoluindo a uma velocidade que começa a ficar para além do simples português. Isso levá-lo muito mais longe do que podemos imaginar. Não é bom nem mau: é a evolução.

Quando você vem ao Brasil, como enxerga as consequências do colonialismo no nosso país?
A forma mais eloquente de explicar talvez seja esta: quando piso no território brasileiro, me sinto viajando no tempo. Parece que cheguei a Moçambique nos anos 1960 ou 1970. Temos negros de um lado e brancos do outro. Negros trabalhando para os brancos, ganhando pouco. Brancos bem vestidos com casas boas, negros mal vestidos vivendo na favela. Igualzinho. A diferença racial e de classe é escandalosa.

O Brasil atualmente está sob um governo que tem como pauta, por exemplo, a diminuição de demarcações de territórios indígenas. Acha que as marcas do colonialismo estão voltando a ficar explícitas no Ocidente?
A civilização ocidental está dando uma virada bem fascista. Eu não imaginava ver tal coisa no tempo da minha vida. Nos anos 1970, eu era adolescente e sentia que o mundo parecia encaminhar-se para uma situação de mais justiça e igualdade para todos no que respeitava questões laborais, de gênero, raça, classe e identidade sexual. Os anos 1960 e 1970 foram maravilhosos nesse aspeto. Havia um espírito de irmandade, de camaradagem que nos levava a estarmos juntos para construir uma sociedade melhor. Vi tudo isso ser derrubado a partir dos anos 1990. Voltamos ao individualismo, ao "cada um faz por si e o outro que se vire", um desrespeito pelos valores da democracia, que é o único sistema que, não sendo exatamente perfeito, nos vai salvando a vida. A questão da liberdade de porte de arma no Brasil e do estímulo ao seu uso é muito grave por uma questão de segurança pública. Não há paz com armas. A denúncia a professores que possam dizer algo considerado discurso de esquerda me apavora. Um bom professor não pode evitar falar sobre justiça social. Eu tento me alimentar da esperança de que o Brasil vai ultrapassar esta fase rapidamente no próximo ciclo eleitoral. Tenho de pensar que isto é apenas uma nuvem escura que está atravessando o céu. Porque a vida precisa de continuar. Mas vocês, brasileiros, e nós todos, temos de estar muito atentos, com a voz e os braços bem ativos.
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