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CINEMA

Documentário sobre fabricação de jeans em Toritama mostra luta pelo trabalho autônomo

Publicado em: 10/07/2019 08:09 | Atualizado em: 10/07/2019 09:03

O ritmo incessante das fábricas de jeans engole não só o tempo de vida das pessoas, mas também a antiga economia do meio rural. Foto: Reprodução
"No futuro todos nós viveremos em uma grande Toritama". O presságio do diretor recifense Marcelo Gomes, traz à tona uma discussão sobre trabalho autônomo, perda de direitos trabalhistas e a construção de uma nova relação com o tempo, permeada por memórias de infância e anseios por um carnaval tranquilo. O debate é o mote do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, que será exibido pela primeira vez nesta quarta-feira (10), em uma pré-estreia no Cinema da Fundação (Rua Henrique Dias, 609, Derby) às 20h, com a presença do diretor. Em circulação em festivais nacionais e internacionais, o filme integrou a Mostra Panorama do Festival de Berlim e foi premiado pela Abraccine no Festival É Tudo Verdade 2019.

Em uma breve passagem pela cidade situada no Agreste pernambucano, há três anos, o cineasta se deparou com um cenário muito diferente do que havia deixado. Repaginado, e veloz, contaminado pela produção frenética de calças jeans, pelo barulho das máquinas e a esforço repetitivo das fábricas artesanais. Guardada na memória como pacata, a cidade que Gomes conhecia na infância, das ruas tranquilas, biblioteca pública, orquestra de música e festas dos padroeiros, se transformou na Capital do Jeans, responsável por 20% da produção das peças no país.

Foto: Reprodução
A paisagem do Agreste atravessou a infância do diretor. Com o pai de Caruaru e a mãe de São Caetano, as visitas a Toritama eram constantes. Mais velho, passou a acompanhar o pai no horário do expediente como servidor público da região. "Meu pai era fiscal de tributos, hoje eu sou um fiscal do tempo alheio. Sou tomado pela lembrança e pela angústia da repetição. Um tempo coletivo preenchido por um trabalho sem fim", narra Gomes, no decorrer do filme, quando se dá conta de sua imersão na rotina da fabricação do jeans na cidade.

Durante as filmagens, pouco a pouco, o diretor, conhecido pelos dramas Cinema, aspirinas e urubus, Joaquim e Era uma vez eu, Verônica, foi percebendo que suas memórias participavam e percorriam a construção da narrativa. Então, optou por fazer parte do filme, como interlocutor e ouvinte. Do olhar, nasceu um documentário afetuoso sobre gerações de famílias inteiras que se dedicam ao trabalho sem parar, com pouquíssimas horas de descanso. "Logo no início, as pessoas que abordei me diziam que não podiam parar de trabalhar porque iriam perder dinheiro. Foi aí que me deram a ideia de filmar o movimento das máquinas de costura e o dinamismo da produção. Então fui deixando que o documentário fosse poroso, que me contaminasse", explica, destacando o ritmo e a sonoridade presentes no longa.

O diretor pernambucano Marcelo Gomes. Foto: Mujica/Divulgação
 
"Mas confesso que muitas vezes precisei silenciar o barulho dos maquinários, uma mistura de ansiedade e angústia tomava conta de mim". Ao longo da construção, texturizada por afetos e sensações, personagens interessantes cruzam a narrativa, como o Veio do Ouro, a vitrine humana que desenha suas próprias peças em jeans e fica em frente à sua casa, sempre acompanhado por garrafas de bebida, e expõe as roupas para que algum passante se interesse pelos modelos. E Léo, um jovem que teve sua vida profissional marcada por trabalhos manuais pesados e agora investe na construção de uma “facção” para ter sua própria produção de jeans e ser dono de seu tempo.

Enquanto o espaço rural é, aos poucos, ressignificado e engolido por um mundo em expansão, alguns ainda resistem. Uma senhora se mantém na agricultura, um senhor guarda seu tempo para observar as mudanças climáticas e um cuidador de rebanho atravessa cuidadosamente a rodovia.A ausência de ruídos da cidade só é realidade nos dias de carnaval quando os trabalhadores se debandam para as praias do litoral sul do estado em busca  de descanso e tranquilidade. Com a chegada do feriado, muitas pessoas costumam vender seus próprios eletrodomésticos, muitas vezes de primeira necessidade, como geladeiras, para fechar o orçamento.

"Quando soube do comércio pré-carnavalesco eu quis entender como funcionava. Seria uma transgressão ao capitalismo? Achei muito forte alguém se desvencilhar dos bens de consumo dessa forma e viajar em busca de uma felicidade efêmera, sem arrependimentos. E na volta trabalham para comprar tudo de novo. Fiquei intrigado. Gosto de fazer filme sobre coisas que não entendo", conta Marcelo Gomes, que se debruçou em visitas a fábricas de jeans de grande, médio e pequeno porte, além dos improvisos em garagens e de fundo de quintais de casas, as chamadas 'facções'.

Foto: Reprodução
Com a extinção do Ministério do Trabalho e a nova reforma trabalhista em vigor há pouco mais de um ano, Marcelo acredita que a discussão chegou no momento certo. "Fico muito feliz que o filme esteja sendo lançado agora, abrindo uma discussão importante em um momento que o novo governo federal extingue direitos do trabalhadores e promove a política do trabalho autônomo sem se saber as reais consequências. A gente trabalha para viver ou vive para trabalhar? Qual o papel do Estado para defender o trabalhador? Quero refletir sobre as consequências da nova política", pontua. De acordo com ele, Toritama já vive um retrato do Brasil no futuro, com trabalhadores se escravizando para serem autônomos. 

"As pessoas sentem orgulho de serem donas de próprio negócio, sem metas nem chefes. Achei que estava vivenciando uma revolução industrial, mas depois passei a lê-la como uma face do neoliberalismo. As pessoas são vítimas delas mesmas. É a sociedade do cansaço que constrói uma rotina de trabalho sem ver o tempo passar".
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